quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

NATAL: NASCEU PARA NÓS O SALVADOR

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor. Isto lhes servirá de sinal: vocês encontrarão um recém-nascido, envolto em faixas e deitado na manjedoura” (Lc 2,11-12). Servindo-me destas palavras do evangelho da Missa da Vigília de Natal, propus-me a escrever este artigo.

Muitas vezes o povo pergunta qual o dia e o mês em que Jesus nasceu. Para nós, cristãos, a única fonte escriturística que temos são os evangelhos. Mas nos relatos bíblicos não encontramos nenhuma referência sobre a data do nascimento de Jesus, pois os evangelhos não são crônicas ou narrações biográficas a respeito dele. Eles trazem, sim, a experiência de fé dos cristãos do primeiro século baseada no Cristo Ressuscitado. E falar do Senhor Glorioso, é falar do mesmo Jesus de Nazaré que um dia nasceu. Vemos aí uma relação de continuidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Assim, sobre o nascimento de Jesus sabemos muito pouco.

Importa é que para nós cristãos, o Natal é a celebração do grande amor de Deus, o dia em que Deus nasceu no mundo, trazendo paz, luz, amor, esperança, uma nova aliança, uma nova vida. O Filho de Deus, Jesus de Nazaré, “nasceu em Belém (Cf. Mt 2,1; Lc 2,6-7), como uma criança pobre e marginalizada, misturando-se com toda a humanidade, oferecendo-lhe a presença e a reconciliação de Deus. Em torno deste acontecimento e data, há muitas discussões e tradições herdadas do passado. É que naquela época os calendários eram muito confusos. Os antigos calendários romanos tinham, às vezes, semanas de quinze dias e meses de dez dias, de acordo com a vontade do Imperador da época. O povo em geral não conhecia as datas de nascimento, casamento ou falecimento. Não existem registros históricos a respeito de “Festas de Aniversário” na antigüidade.

Por isso, as comunidades cristãs do primeiro século não comemoravam o nascimento de Jesus. Os evangelhos apenas nos informam que Jesus nasceu antes da morte de “Herodes, rei da Judéia” (Lc 1,5; Mt 2,1), que faleceu na primavera de 750 da era romana, quer dizer, no ano 4 antes de Cristo. Conforme estudiosos, o ano mais provável do nascimento de Jesus é 7 ou 6 antes da era cristã. Sobre a definição do dia 25 de dezembro, temos alguns dados extraordinários.

Os Celtas (povo originário da região sudoeste da Alemanha, leste do Reno, no fim do período do Bronze I [2500-1900 a.C.] e espalhou-se pela Europa entre os séculos VI a I a.C., quando sofreu a dominação do Império romano), por exemplo, tratavam o Solstício do Inverno (quando a luz solar incide com maior intensidade sobre o hemisfério norte) como um momento extremamente importante em suas vidas. O inverno ia chegar, longas noites de frio, por vezes com poucos gêneros alimentícios e rações para si e para os animais, e não sabiam se ficariam vivos até a próxima estação. Eles então faziam um grande banquete de despedida no dia 25 de dezembro. Seguiam-se 12 dias de festas, terminando no dia 6 de Janeiro, data que para nós, cristãos, coincide com a festa da “Epifania do Senhor”.

Em Roma, o Solstício do Inverno também era celebrado muitos séculos antes do nascimento de Jesus. Os romanos o chamavam de Saturnálias (Férias de Inverno), em homenagem a Saturno, o Deus da Agricultura, que permitia o descanso da terra durante o inverno.

Em 274 o Imperador romano Lúcio Domício Aureliano (270-275) proclamou o dia 25 de dezembro, como “Dies Natalis Invicti Solis” (Dia do Nascimento do Sol Inconquistável). O Sol passou a ser venerado. Buscava-se o seu calor que ficava no espaço muito acima do frio do inverno na Terra. O início do inverno passou a ser festejado como o dia do Deus Sol.

A partir daí, o Papa Júlio I (337-352) decretou, em 350, que o nascimento de Cristo deveria ser comemorado no dia 25 de Dezembro, substituindo a veneração ao Deus Sol pela adoração ao Salvador Jesus Cristo. O nascimento de Cristo passou a ser comemorado no Solstício do Inverno em substituição às festividades do Dia do Nascimento do Sol Inconquistável.

Para nós, habitantes do Hemisfério Sul, se considerarmos o Solstício do Inverno, não há razão para se comemorar o Natal no dia 25 de dezembro. Porque nesta data vivemos os primeiros dias do verão e não do inverno. Porém, herdamos as tradições cristãs que vieram do Hemisfério Norte.

Assim sendo, o que nos interessa é celebrar este ato de amor maravilhoso de Deus. Um Deus que veio ao mundo e inaugurou uma nova vida entre nós. Este é o grande motivo da nossa festa. Até porque, natal sem Jesus não é natal.

Voltando agora ao texto de Lucas acima citado, podemos perceber dois dados importantes nas palavras do anjo aos pastores. Primeiro, o anúncio da Boa Notícia que será uma grande alegria para todo o povo” (Lc 2,10). De fato, a Boa Notícia mostra que o Menino que nasceu é o Salvador, porque trouxe a libertação e a salvação definitivas; que ele é o Messias, porque é o ungido, o Cristo de Deus que veio estabelecer uma relação de justiça e amor entre nós; e que ele é o Senhor, porque derruba todos os obstáculos da nossa caminhada, conduzindo-nos com segurança dentro de um tempo novo.

Segundo, a incidente necessidade de uma intervenção direta de Deus para que o Messias/Cristo fosse identificado, através de um sinal, em razão das circunstâncias estranhas do seu nascimento: “vocês encontrarão um recém-nascido, envolto em faixas e deitado na manjedoura. Isto porque Jesus, filho de “José, que era descendente de Davi (Lc 1,27), não nasceu num palácio real. Foi exatamente entre os deserdados da vida e para os sofredores e desprezados que nasceu o Salvador, o Messias, o Senhor. Por isso, os pastores, símbolo dos pobres e marginalizados da época, foram os primeiros missionários que receberam a responsabilidade de anunciar a chegada de Jesus.

Também hoje, devemos saber identificar os ambientes e as realidades onde Jesus está concretamente presente. Sabemos que encontramos Jesus na Palavra (Bíblia), nos Sacramentos de modo geral, muito especialmente na Eucaristia, na comunidade que vive e celebra unida, na vida de todas as pessoas de bom coração, nos pobres e abandonados (Cf. Mt 25,31-46), etc..

No mundo de hoje, no corre-corre da vida, quase não temos tempo para encontrarmo-nos com Jesus, para celebrarmos e vivermos esta “grande alegria”. Em vista disso, o papa Bento XVI muito bem asseverou: “Nós temos sempre pouco tempo, especialmente para o Senhor. Às vezes, não sabemos ou não queremos encontrá-lo. Mas Deus tem tempo para nós. Dá-nos seu tempo porque tem entrado na história com sua palavra e suas obras de salvação, para abri-la à eternidade e fazê-la história da aliança. O tempo é em si mesmo um sinal fundamental do amor de Deus: um presente que o ser humano pode valorizar, ou ao contrário, estragar; acolher seu significado, ou descuidar com superficialidade” (Notícias da CNBB, 02/12/2008).

Em face disso, vale à pena lembrar da canção: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores). Assim, mãos à obra, enquanto há tempo. Porque “quanto a nós, não podemos nos calar sobre o que vimos e ouvimos (At 4,20). E "o que ouvimos , o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam é a Palavra, que é a Vida" (1Jo 1,1), isto é, o próprio Jesus.

Para concluir, peço que Maria, a Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, estrela da nova evangelização, primeira discípula e grande missionária do Pai nos abençoe e nos ajude a sermos verdadeiros proclamadores desta grande e boa notícia: “nasceu para nós um Salvador que é o Messias, o Senhor”.

domingo, 21 de dezembro de 2008

MEUS 20 ANOS DE SACERDÓCIO


Pe. Paulo Nunes de Araujo


Diz as “Palavras de Cohélet: “Há um momento para tudo, e um tempo certo para cada coisa debaixo do céu. Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para plantar e tempo para colher. Tempo para amar e tempo para odiar. Tempo para a guerra e tempo para a paz” (Ecl 3,1-2.8).

Percebemos aí que a palavra-chave é “tempo”. Segundo o escritor Alan Cordeiro, “o grande poeta argentino, Martin Fierro, diz que o tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Essa formulação mostra o processo de realização do crônos (tempo), vindo do futuro em direção ao presente” (CORDEIRO, Alan. A brevidade da vida. Disponível em: <clicar aqui>. Acesso em: o2 dez. 2008). Realmente, o que passou é graça, é dádiva; a nossa expectativa é com o que encontra-se por vir. É em função do futuro que nos preparamos, nos entusiasmamos, contamos com o apoio outro, e pedimos as bênçãos de Deus, como nos ensina o apóstolo Paulo: “esqueço-me do que fica pra trás e avanço para o que está na frente. Lanço-me em direção à meta” (Fl 3,14).

Assim, após vinte anos de vida sacerdotal, inspirado no texto do Eclesiastes supracitado, digo que há também um tempo para avaliar e um tempo para celebrar. Nesse processo avaliativo, lembrei-me das palavras do físico alemão Albert Einstein: “nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado”. Então, percebi que celebrar era preciso. Foi assim que, no dia 10/12, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, na cidade de Miranda, MS, onde fui criado e onde recebi o Sacramento da Ordem, na companhia de meus familiares, de verdadeiros amigos paroquianos e do pároco, Pe. Altair, celebramos a Santa Missa (Veja fotos neste blog). Aliás, nesses vinte anos, fiz questão de celebrar anualmente a Eucaristia em vista desta data tão especial para mim.

É claro que, nessa estrada, enormes foram as vicissitudes. Porém, dia a dia serviram-me de alento as palavras de Paulo apóstolo: “Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. De fato, embora estejamos vivos, somos sempre entregues à morte, por causa de Jesus” (2Cor 4,8-9.11).

Realmente, senti na carne o que dizia João XXIII: “por certo, a condição do padre é muitas vezes difícil. Não é para admirar que seja o primeiro alvo visado pelos inimigos da Igreja, porque, dizia o cura d’Ars, quando se quer destruir a religião, começa-se por atacar o padre” (Carta Encíclica Sacerdotii Nostri Primordia, no centenário da morte do Cura de Ars, n. 63)

Contudo, nesses vinte anos de sacerdócio procurei sempre ser do jeito que sou, com minhas qualidades e qualificações, limitações e fraquezas. Tudo isso, ciente de que os conflitos são inerentes ao caminho, como ensina o autor sapiencial: “Meu filho, se te ofereceres para servir o senhor, prepara-te para a prova. Endireita teu coração e sê constante, não te apavores no tempo da adversidade” (Sir 2,1-2). Tal compreensão teve o apóstolo Paulo ao dizer que “trazemos, porém, este tesouro (Cristo) em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não de nós” (2Cor 4,7). Da mesma forma, S. João Maria Vianney, o cura d’Ars, patrono dos padres: “Se ao morrer me desse conta de que não existe nada de positivo e de que errei durante toda a minha vida, isso não mudaria nada para mim. Ficaria feliz por ter errado acreditando sempre no Amor.

Cito ainda o renomado psiquiatra norte-americano David D. Burns, que na faina com os seus filhos, constatou: “fiquei surpreso ao saber que me amavam mais por eu ser capaz de admitir erros, pois aí eu ficava mais humano” já que, conclui ele, “somos mais inteiros (íntegros) quando sentimos falta de algo”. No horizonte da fé cristã, esse algo é a graça de Deus. Ninguém se basta a si mesmo. Sabemos que a graça de Deus é abundante e ela só se edifica na natureza, embora a natureza humana seja falha. No entanto, “a graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a” (Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I,8,1 a 2). Assim sendo, somos sempre carentes da graça de Deus. É ela que nos completa, que nos torna inteiros.

Mas sempre assumi a minha fragilidade humana dentro da sincera, madura e atual mentalidade presbiteral: “somos conscientes de nossa fraqueza, e da necessidade de sermos purificados” (DA, n. 177). Além disso, admito esta condição na confiança do salmista: “Senhor, não te lembres de meus desvios, nem dos pecados da minha juventude. Lembra-te de mim, conforme o teu amor, por causa da tua bondade” (Sl 25/24,7), e na humildade do apóstolo: “pela graça de Deus sou o que sou: e sua graça dada a mim não foi estéril” (1Cor 15,10a).

Neste dia em que celebro o meu vigésimo aniversário sacerdotal, trago aqui marcantes recordações. Por exemplo, relembro que durante o Ritual de Ordenação o bispo ordenante D. Pedro Fré, abriu o “diálogo” com estas palavras: “Caro filho, antes de ingressares na Ordem dos Presbíteros, deves manifestar perante o povo o propósito de aceitar este encargo”. Logo em seguida perguntou-me: a) Paulo, você quer desempenhar a missão sacerdotal como presbítero em colaboração com os bispos, cuidando do rebanho de Jesus Cristo, sob a iluminação do Espírito Santo? b) Você quer celebrar com devoção e fidelidade os mistérios de Cristo, para o louvor de Deus e santificação de seu povo, segundo o costume da Igreja? c) Você quer, com disponibilidade e sabedoria, colocar em prática o ministério da Palavra, ensinando o evangelho e a fé cristã-católica? d) Você quer unir-se cada vez mais ao Cristo, sumo Sacerdote, que se entregou ao Pai por nós, e ser com ele consagrado para a libertação e salvação do seu povo? e) Você promete respeito e obediência ao seu bispo e aos seus superiores?

A todas estas cinco questões eu respondi com um sim consciente, livre, espontâneo, alegre e decidido. Por fim, concluiu o bispo: “Deus, que te inspirou este bom propósito, te conduza sempre mais à perfeição”. E hoje, olhando em retrospectiva, creio honestamente tê-las exercido a contento.

Também rememoro com grande emoção alguns gestos durante o Ritual de Ordenação que me tocaram profundamente: a) a colocação das minhas mãos entre as mãos do bispo: este gesto indica que é Deus quem de fato envolve as nossas mãos, não para prendê-las, e nem para ficar com os braços cruzados, mas para que elas se abram aos outros; b) a prostração: este gesto muito antigo sinaliza a total dedicação a Deus, o reconhecimento da própria impotência e da própria humanidade. Por isso, deita-se com o rosto para o chão, indicando que somos ordenados não porque merecemos a ordenação sacerdotal, mas porque Deus nos chamou em nossa fraqueza; c) a imposição das mãos: o bispo coloca as mãos sobre a cabeça do futuro sacerdote e reza em silêncio para que o Espírito Santo impregne, transforme e capacite para a missão. O que se destaca aí não é a capacidade humana, mas a ação do Espírito Santo. Depois, os outros sacerdotes presentes, fazem o mesmo gesto; d) a oração da ordenação: da oração feita pelo bispo, destaco este trecho: “Ó Deus, dê a seu servidor a virtude sacerdotal. Renove nele o espírito de santidade; Faça, ó Deus, com que ele se atenha ao ofício que recebeu da sua mão; que a vida dele seja para todos estímulo e fio condutor. Abençoe, santifique e ordene o seu servidor escolhido pelo Senhor”; e) a unção das mãos: a unção com o Crisma é um sinal de que o Espírito Santo é quem distribui suas graças mediante as mãos vazias, e expressa o desejo de que elas sejam sempre mãos afetuosas, que tocam as pessoas, e as aproximam fisicamente do amor de Deus. De fato, todos os sacramentos que o sacerdote ministra, são sacramentos de toque; f) a oferenda do pão e do vinho: da oração que o bispo faz diante do ordenando, ressalto estas palavras: “Aceita as doações do povo para a celebração do sacrifício. Reflete sobre o que fazes, imita o que realizas e coloca tua vida sob o mistério da cruz”; g) a saudação da paz: esta saudação é marcada pela afetividade, pelo amor e alegria, que tanto o bispo ordenante como os sacerdotes presentes expressam ao novo sacerdote; h) a bênção neo-sacerdotal: a sensação que se tem é que a força do Espírito Santo flui com muito mais intensidade nesta primeira bênção. Na verdade, o desejo é que o Espírito Santo sempre atue sobre o povo com essa mesma força.

Voltando à Santa Missa, na Igreja Matiz de Miranda, tive então a oportunidade, durante a homilia, de expor toda a minha trajetória ao longo dessa caminhada. Honestamente, percebi que tenho uma plausível biografia. Pois sempre fui muito respeitado e bem avaliado nos lugares onde eu trabalhei e, consecutivamente, deixei todos esses lugares com a cabeça erguida e o peito aberto, celebrando uma Missa de “envio” e cumprimentando um por um na porta principal da Igreja.

Por isso mesmo, mais uma vez celebrei esta data com a consciência tranqüila e serena de quem até o momento cumpriu o seu dever, com aquela mesma intrepidez do apóstolo Paulo, dirigindo-se às lideranças de Éfeso: “Vocês bem sabem de que maneira me comportei em relação a vocês durante todo o tempo, (...) Servi ao Senhor com toda humildade, com lágrimas e no meio das provações que sofri por causa das ciladas (...) Nunca deixei de anunciar aquilo que pudesse ser de proveito para vocês, nem de anunciar publicamente e também de casa em casa. Pois não deixei de lhes anunciar todo o projeto de Deus sobre vocês. (...). Em tudo mostrei a vocês que é trabalhando assim que devemos ajudar os fracos, recordando as palavras de Jesus, que disse: ‘há mais felicidade em dar do que em receber’” (At 20,18-20.27.35).

Posto isso, de joelho, diante de meus familiares, da comunidade ali presente, do pároco Pe. Altair e, sobretudo, diante de Deus, revigorei o meu compromisso sacerdotal com esta oração: “Senhor Jesus, é um mistério porque me escolhestes para o sacerdócio ministerial. Sou pequeno, frágil, pecador. Vós conheceis tudo e sabeis de que barro sou feito. Sou um vaso de argila, levando uma carga preciosa: a vossa misericórdia, a vossa compaixão, o vosso amor. Neste dia em que celebro o aniversário da minha ordenação presbiteral, junto com o meu irmão de sacerdócio, Pe. Altair, com minha família e com toda a comunidade, quero renovar minhas promessas sacerdotais. Quero permanecer unido a Vós e a todos os meus irmãos, reassumindo com alegria o meu compromisso sacerdotal; Quero estar sempre aberto à ação do Espírito Santo para poder ensinar aos meus irmãos os mistérios da fé, à luz da palavra de Deus, e com eles celebrar o vosso grande amor, revelado nos sacramentos; Quero fazer com que a Eucaristia seja o centro da minha vida e da vida de todos aqueles que a mim foram confiados; Quero estar unido a todos os meus irmãos sacerdotes, orando por eles, animando-os com minha presença e amizade, sendo solidário e estendendo-lhes a minha mão nos momentos mais difíceis; Prometo estar sempre disponível aos serviços que me forem confiados na minha diocese e que, unido ao meu bispo, possa cada dia me transformar na imagem do Cristo Sacerdote, Bom Pastor, Mestre e Servo de todos. Amém!

Transcorrida a Santa Missa, após a comunhão, fiquei muitíssimo emocionado. Primeiro, com uma bela mensagem que recebi da comunidade paroquial, a qual recolhi e aqui a transcrevo, na íntegra:

“Querido irmão Pe. Paulo, celebramos cheios de muita gratidão a Deus os vinte anos de tua ordenação sacerdotal. Recordamos aquele 10 de dezembro de 1988, onde, no ginásio de esporte aqui da nossa cidade, junto aos teus familiares e amigos, eras consagrado definitivamente a Deus, tornando-te “sacerdote para sempre” (Cf. Sl 110/109,4). Assim é para todos aqueles que vivem o Sacerdócio: divino mistério de um Deus que se sujeita a ser nas mãos humanas e limitadas de homens, a hóstia que alimenta a caminhada de um povo. Divino Mistério de amor que nos sacramentos e bênçãos, no acolhimento e no conselho, na Palavra Viva e anunciada no Evangelho, quis servir-se de homens para fazê-los instrumentos de sua ação no caminho da vida.

Ao completar todos esses anos em resposta à tua vocação, padre Paulo, tens demonstrado uma firmeza de fé, uma sabedoria e um desejo imensurável de transformar cada um de nós em uma Igreja Viva, atuante, humana e cheia de compaixão. Celebrar estes vinte anos, querido irmão, deve ser para ti motivo de satisfação ao ver reunido ao teu lado, os amigos que se beneficiaram do teu entusiasmo, de tuas palavras e do teu carinho para poderem continuar suas lidas da vida humana, com a certeza e a confiança de que Deus está sempre perto de cada um deles. Celebrar é ainda recordar os feitos, não tanto as obras, mas as conquistas que o coração pode alcançar, os bens distribuídos pelo poder Divino através de tuas mãos. É render graças a Deus que mesmo vendo as limitações humanas, “realiza grandes coisas e Santo é o seu Nome Bendito” (Lc 1,49).

Lógico que tivemos os nossos momentos de discordância, até nos ferimos nos espinhos, mas automaticamente erguemos os nossos olhos à flor e verificamos que a sua essência serve para valorizar a amizade, o amor e a dedicação que encontramos em ti, que para nós é conterrâneo, filho do mesmo Pai do Céu, nascido do mesmo amor de Deus. Querido irmão, dizer-te parabéns é pouco... Dizer-te obrigado seria a melhor forma de reconhecer esta caminhada que vais levando em frente.

Apoiando-se nos braços carinhosos de Maria, segue, irmão, na entrega total, fazendo-se “grão de trigo que morrendo dá a vida” (Cf. Jo 12,24). Queremos deixar aqui o nosso grande abraço por esta data maravilhosa, pois sabemos que fazemos parte desta tua caminhada. A Deus nós agradecemos a oportunidade que nos deu de participarmos desta comemoração de 20 anos da sua vida sacerdotal sempre repleta de amor e dedicação. Parabéns, Pe. Paulinho! Te amamos de coração”.

Depois desta mensagem, fiquei igualmente comovido com a alocução do Pe. Altair, a quem considero verdadeiro amigo e irmão de sacerdócio, conforme a Pastoral Presbiteral pede. Dirigiu-me ele palavras de carinho, de apoio, de conforto, colocando-se do meu lado, tanto nas minhas angústias, quanto nos meus anseios. Tudo isso, encheu-me de um orgulho saudável. Senti-me como aquele filho que ao voltar para casa, foi recebido com compaixão pelo pai, de braços abertos e com uma grande festa que lhe foi preparada (Cf. Lc 15,11-32). Parece que este evangelho acabou acontecendo, na prática, pois logo após a Santa Missa, fui homenageado com uma linda e calorosa festa surpresa. Já não dava para conter tamanha emoção.

Evento parecido ocorreu também com os meus ex-paroquianos e ex-alunos de Sagrada Escritura, da Paróquia Nossa senhora do Desterro, na cidade de Mairiporã, SP, no dia 14/12. Além dos amigos presentes, ali estavam comigo também a minha mãe Olga e o meu irmão Valdir. Dentre os vários cartazes com palavras de afeto e de amor, uma me emocionou demais: "Longe dos olhos; mas não do coração" (1Ts 2,17). Estava colocada dentro de um enorme coração. Linda foi a celebração da Santa Missa, os testemunhos, as manifestações de carinho, e delicioso foi o almoço preparado para todos os convidados. Tudo estava maravilhoso (Veja as fotos neste blog). Tanto em Miranda, quanto em Mairiporã, tudo foi magnífico, encantador, revitalizante.

Concluídas estas celebrações, tendo refeito o meu compromisso sacerdotal e me reanimado a continua esta jornada, assumi mais uma vez a recomendação do apóstolo Pedro aos presbíteros: “cuidem do rebanho de Deus que lhes foi confiado, não por imposição, mas de livre e espontânea vontade, como Deus o quer; não por causa do lucro sujo, mas com generosidade; não como donos daqueles que lhes foram confiados, mas como modelos para o rebanho” (1Pd 5,2-3).

Para que este propósito melhor se realize, vou continuar sempre contando com a bênção de Deus, a proteção de Maria, o apoio da minha família e a amizade, o carinho e as orações da comunidade, três forças que sempre me alimentaram durante todos esses vinte anos de caminhada, sem as quais, certamente eu não teria chegado até aqui. Por tudo isso, só me sobra dizer, do fundo d meu coração, um Muito obrigado! E “oremos uns pelos outros” (Tg 5,16).

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"O SENHOR É MINHA LUZ E SALVAÇÃO; DE QUEM EU TEREI MEDO?" (Sl 27/26,1)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
“Ora, se nós pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de vocês dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, então Cristo também não ressuscitou; e se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia e também é vazia a fé que vocês têm” (1Cor 15,12-14). No espírito do “Ano Paulino”, com estas eloqüentes palavras do apóstolo, inspirei-me a escrever este artigo sobre o “Dia dos fiéis defuntos”.

Historicamente, alguns dados nos mostram a origem e a evolução deste “dia”. O culto aos mortos é um dos mais antigos, surgido no meio agrário e pastoril, e esteve presente em quase todas as religiões da época. Para os antigos, os mortos eram como sementes, e por isso eram enterrados na espera de um novo nascimento (ressurreição).

No século I, os cristãos tinham o costume de visitar os mortos, mas iam apenas os túmulos dos mártires, daqueles foram mortos defendendo a fé cristã. No século IV, o “Dia dos mortos” surgiu na Igreja Católica como uma ligação suplementar entre mortos e vivos, uma prática que foi assumida por todo o mundo em geral.

A partir do século V, a Igreja Católica passou a dedicar um dia do ano para rezar pelos mortos, especialmente pelos que eram esquecidos. No ano de 998, a Igreja começou a apontar um dia oficial para os mortos, o “Dia de Finados”. Por fim, entre os anos 1024 e 1033, a Igreja Católica fixou o dia 2 de novembro como o “Dia de Finados”, estabelecendo ligação deste dia com a “Solenidade de todos os santos”, esta surgida a 1º de novembro de 835.

Para os cristãos de modo geral, sobretudo para nós católicos, esse dia não pretende ser um momento fúnebre e triste, mas de celebração esperançosa da memória de nossos entes queridos que faleceram, que “morreram no Senhor”.

Essa ocasião também pretende levar-nos a lembrar que a nossa vida aqui na terra é passageira, e que nós, seres humanos, somos a única criatura divina que “aspira a eternidade”; caminhamos para Deus, pois é para ele mesmo que fomos criados. De fato, “se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens” (1Cor 15,19). Portanto, a morte deve ser vista como “fim bom”, meta almejada e um dia alcançada. Leonardo Boff, teólogo brasileiro, assevera que “a morte pertence à vida, e a vida pertence à eternidade, que é a realização plena das virtudes da vida”. Diante desse “gigante” da teologia, recordo aqui a sábia fala de um simples homem de fé: “Quem tem medo de morrer, é porque não sabe viver”. Então, “é preciso saber viver”, como diz a canção.

No entanto, mesmo para os que crêem, a realidade da morte até agora permanece um profundo mistério para o ser humano: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? E para os que não crêem direito, a morte provoca ao menos um grande respeito, uma profunda reverência; uma postura ao menos cultural e social.

A comemoração do “Dia de Finados” ainda se propõe a nos advertir contra toda e qualquer forma de reencarnação. A nossa fé cristã e católica é clara: “É um fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem o julgamento” (Hb 9,27). Por isso, reitera o Magistério eclesial: “Vigiemos constantemente, a fim de que no termo de nossa vida sobre a terra, que é só uma, mereçamos entrar com Ele para o banquete (...) e ser contados entre os eleitos” (Lumen Gentium, n. 48). E na “Solenidade de todos os santos”, a Igreja celebra todos os que morreram na graça de Deus, mesmo os que não foram canonizados oficialmente. Afinal, todos somos chamados à santidade, como dom de Deus e não mérito nosso.

Tomemos agora alguns pressupostos fundamentais. Quando Jesus ficou sabendo que estava prestes a morrer, seus discípulos ficaram tristes, angustiados, perturbados. Face a isso, Jesus deixou a eles essas palavras de conforto e consolo: “Eu vou preparar-vos um lugar. Quando tiver ido e tiver preparado um lugar para vós, voltarei novamente e vos levarei comigo para que, onde eu estiver, estejais também vós” (Jo 14,3c-3).

Nós cremos que Jesus Vivo já habita em nosso coração. A “morada” (teologicamente podemos entender como ambiente de gostosa, fraterna e amorosa convivência) que ele preparou para si em nosso íntimo não será, jamais, destruída pela morte, mas transformada no “lugar” eterno que já igualmente preparou para nós junto ao Pai.

O que acreditamos a respeito de Jesus, podemos dizer também das pessoas amadas que nos precedem na morte. Cremos que também elas nos preparam um lugar junto de Deus. Quando uma pessoa querida morre, leva para Deus tudo o que com ela partilhamos aqui na terra: as conversas, o amor, as experiências de vida em comum, etc. Vale dizer, leva consigo um pedaço de nós para junto de Deus. Diz L. Boros, teólogo húngaro, que “pela ressurreição tudo se tornará então imediato para o homem: o amor se desabrocha na pessoa, a ciência se torna visão, o conhecimento se transforma em sensação, a inteligência se faz audição. Desaparecem as barreiras do espaço: a pessoa humana existirá imediatamente onde estiver seu amor, seu desejo e sua felicidade”. Assim, diz o mesmo teólogo, “a ressurreição, na concepção cristã, não é a volta a vida de um cadáver, senão a realização exaustiva das capacidades do homem”.

Portanto, quando morremos, não iremos par um “lugar” totalmente estranho, mas para a “morada” que Cristo e as pessoas boas e amadas que nos precederam na morte nos prepararam. Lá fixaremos morada eternamente, contemplando a Deus “face a face” (1Cor 13,12), tal como ele realmente é. Esta certeza nós a encontramos já na literatura sapiencial, que apresenta os primeiros balbucios sobre a fé na ressurreição: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e, depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,25-27a). Destaca-se aí a figura do “redentor”. (no latim: redemere: re + edemere: recomprar, comprar de volta). Para o povo judeu, o “redentor” (no hebraico: go'el: redentor, resgatador, libertador, o vingador de sangue em nome da justiça) era um membro da família, do clã ou da tribo que deveria fazer justiça ao seu próximo que fora injustiçado. Para os cristãos do primeiro século, Jesus é agora o novo e definitivo Redentor, que resgata a nossa vida das garras da morte, fazendo-nos justiça com o seu próprio sangue.

Na minha experiência pastoral, nas inúmeras visitas a enfermos que realizei, ouvi muitas pessoas de fé dizerem, já à beira da morte: “Um dia vamos nos rever na eternidade”. São pessoas que realmente crêem nas palavras do próprio Jesus, dirigidas àquele que com ele também foi crucificado: “Eu te asseguro: ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

O amor que nós demos e recebemos aqui na terra não morre jamais. Dizia Gabriel Marcel, filósofo e dramaturgo francês: “amar uma pessoa significa dizer-lhe: você não morrerá”, ou ainda Anselm Grün, monge beneditino e teólogo: “na amizade existe algo indestrutível, divino, que mesmo na morte não pode ter fim”. A pessoa amada aqui na terra, será amada também na eternidade, só que de maneira nova, dentro do mistério de Deus. Essa certeza nos deu o autor do Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que repousem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem” (Ap 14,13). Aí será um amor sem distorções, um amor livre, sem exclusivismos, sem limites, enfim, um amor divino e eterno.

Mas inevitavelmente, a morte de uma pessoa querida nos causa tristeza, angústia, aflição. Afinal, somos humanos. A dor da partida de alguém é inafugentável. Bons psicólogos dizem que é preciso sofrê-la e suportá-la até o fim, ou melhor, até superá-la. Os cristãos do primeiro século, diante do conflito da morte, souberam conservar e nos ensinar a “nostalgia esperançosa” pela vinda nova do Senhor: “Nós somos cidadãos do céu. De lá esperamos o Salvador e Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21).

Também nós, hoje, vivemos esta mesma “nostalgia esperançosa”. No correr da Celebração Eucarística, por exemplo, em que fazemos memória dos falecidos, assim dizemos: “Nele (em Deus) brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Missal Romano. Prefácio dos mortos I: a esperança da ressurreição em Cristo).

Há ainda outra situação causada pela ralidade da morte; ela nos coloca diante do luto (no latim: luctu: tristeza profunda, consternação, pesar ou dor pela morte de alguém). O luto pela perda da pessoa querida nos põe também à vista de todo o tipo de luto que provavelmente já ocorreu em nossa vida, como: abandono, decepção, humilhação, fracasso, indiferença, angústia, depressão, etc.. Porém, o luto terá fim, se transformará, conduzirá a uma nova alegria de viver. Aqui, mais uma vez, em meio ao sofrimento do povo, a Palavra de Deus surge como grande acalento. No final, “não haverá mais morte, nem pranto, nem grito, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21,4).

Realmente, a pessoa que tem fé, está convencida de que não pode ficar de luto o tempo todo, a vida inteira, porque tem certeza de que quem faleceu está em Deus, como nos assegura o apóstolo Paulo: “Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma sobre os mortos, para não vos entristecerdes como as outras pessoas que não têm esperança” (1Ts 4,13). Com isso, Paulo não proíbe o luto, mas nos faz um apelo: Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4,17).

Quando S. Jerônimo traduziu os textos bíblicos originais em hebraico e grego para o latim, nesta passagem ele traduziu o verbo grego "parakaléo" (exortar, consolar) por “consolamini” (isto é: cum + solus = sozinho + com). De fato, Paulo pede que nos unamos à pessoa que está sozinha em seu luto. Esta é, sem dúvida, uma atitude profundamente humana e cristã, no entender do próprio apóstolo: “alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram” (Rm 12,15). Grande exemplo disso foi o próprio Jesus que, no episódio da “morte-ressurreição de Lázaro” (Cf. Jo 11,1-44), ao ver o povo consternado pela morte do amigo, também “começou a chorar” (Jo 11,35). Porém, certamente não foi um choro de desespero, mas de solidariedade.

No Quarto evangelho, Jesus compara a sua própria morte com o nascimento de uma criança. Assim como o parto, a morte é cheia de dores e angústias. Mas no parto, quando nasce o bebê, só a alegria toma conta. Por isso, diz Jesus que “quando a mulher está para dar a luz, fica triste porque chegou a sua hora. Mas, depois que nasceu a criança, já não se lembra mais da aflição, pela alegria que sente de ter vindo ao mundo um ser humano. Assim também vós estais tristes agora, mas eu vos verei de novo. Então o vosso coração se alegrará e ninguém poderá tirar-vos a alegria” (Jo 16,21-22). Nesta simples comparação, Jesus quer nos mostrar a grandiosidade da sua e da nossa ressurreição. Na verdade, a ressurreição de Jesus vem dizer-nos que nós não nascemos para morrer, mas morremos para ressuscitar, para termos “vida plena” (Jo 10,10).

Na Liturgia da Palavra da Missa deste “Dia de Finados”, além do comentário que já fiz acima à primeira leitura (Jó 19,25-27a), temos o belo texto do apóstolo Paulo (Rm 5,5-11), donde um versículo é destacante: “Irmãos, a esperança não decepciona” (Rm 5,5). Aqui, Paulo apresenta a mais elevada compreensão do termo “esperança” (no grego: hipomoné). Trata-se de uma esperança segura em meio aos mais variados conflitos da vida, uma esperança carregada da certeza de se alcançar a glória (vida) de Deus. Por isso, noutro momento, o apóstolo Pedro, também vai insistir na mesma questão: “reconheçam de coração o Cristo como Senhor, estando sempre prontos a dar a razão de sua (fé) e esperança a todo aquele que a(s) pede a vocês” (1Pd 3,15).

Porém, mais incisiva e determinante é a palavra do próprio Jesus, no Evangelho, acerca da morte-ressurreição: “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39). E Jesus reforça esta garantia: “pois esta é a vontade do meu pai: que toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,40). Ante esta Palavra, só nos resta nos perguntar: estamos mais abertos à vida nova que Cristo já nos trouxe, ou estamos ligados apenas à vida aqui? Procuramos fazer da Palavra de Deus, realmente Palavra de Vida? A morte é para nós o fim de tudo, ou a penetração na mais plena comunhão de amor com Deus e com toda a sua criação?

Para concluir, ofereço este lindo soneto de um famoso poeta de Ponta Delgada, Ilha dos Açores:
“Os que amei, onde estão?
Idos, dispersos, arrastados no giro dos tufões,
levados, como em sonho, entre visões,
na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
na corrente e à mercê dos turbilhões,
só vejo espuma lívida, e caixões,
e entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento,
se consigo fechar os olhos,
sinto-os a meu lado,
de novo, esses que amei vivem comigo.

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também.
Juntos no antigo amor,
no amor sagrado,
na comunhão ideal do eterno Bem”.
(QUENTAL, Antero. Com os mortos. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 20 out. 2008)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

OUTUBRO: O "MÊS MISSIONÁRIO"

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda a humanidade. Quem crer e for batizado, será salvo” (Mc 16,15-16a; Cf. Mt 28,19). Com essas palavas do apóstolo Paulo, inspirei-me a escrever este artigo, em vista do mês de outubro, o mês missionário.

As atividades do mês de outubro culminam no Dia Mundial das Missões, criado por Pio XI, chamado de “papa missionário”, em razão do seu enorme ardor evangelizador. Quanto a origem e evolução dessa data, temos as seguintes informações. Conta-se que na Solenidade de Pentecostes de 1922, Pio XI interrompeu sua homilia e, diante de um impressionante silêncio, tomou seu solidéu, fazendo-o passar entre a multidão de bispos, presbíteros e fiéis na Basílica de São Pedro, no Vaticano, enquanto pedia a toda a Igreja ajuda para as missões. Foi assim que, no mesmo ano, ele criou as Pontifícias Obras Missionárias (POM), recomendando-as como instrumentos principais e oficiais da Cooperação Missionária de toda a Igreja.

Além de estimular a criação de novas frentes missionárias, Pio XI Ordenou os primeiros bispos indianos (1923) e chineses (1926). No Ano Santo de 1925, Pio XI abriu no Vaticano uma Exposição Missionária Mundial e, em 1926, publicou a Encíclica Rerum Ecclesiae, sobre as missões, na qual reafirmava a importância dos objetivos missionários programados no início do seu pontificado. Ainda em 1926, foi-lhe proposta “a instituição, em todo o mundo católico, de um dia de oração e ofertas em favor da evangelização dos povos, a ser celebrado em um mesmo dia em todas as dioceses, paróquias e instituições do mundo católico”. Vendo isso como “uma inspiração que vem do céu”, Pio XI aprovou, em 14 de abril de 1926, a celebração anual do Dia Mundial das Missões, estabelecendo-o no penúltimo domingo de outubro.

Após oitenta e dois anos de história, no espírito do “Ano Paulino”, percebo que atualmente a Igreja está passando pelas mesmas inquietações do apóstolo Paulo, na sua época: o quê e como fazer para que o “Evangelho da salvação” se torne acessível e seja acolhido por todos, nos mais diferentes ambientes, realidades e culturas, nas famílias, em meio à juventude, etc. Enfim, com o mesmo apóstolo, nos perguntamos: “Como poderão invocar aquele no qual não creram? Como poderão crer naquele, se não ouviram falar dele? E como poderão ouvir, se não houver quem o anuncie? Como poderão anunciar se ninguém for enviado?” (Rom 10,14-15).

A missão começa a acontecer no momento em que respondemos positivamente ao chamado de Jesus: “Sigam-me” (Mc 1,17; Cf. Mc 2,14; Mt 4,19; Lc 5,10b; 9,59). Neste aspecto, o Magistério eclesial nos orienta com clareza que “ao chamar os seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o evangelho do Reino a todas as nações (Cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48). Por isso, todo discípulos é missionário, pois Jesus o faz partícipe da sua missão, ao mesmo tempo que o vincula a Ele, como amigo e irmão” (DA, n. 144). Diante do chamado de Jesus: “Sigam-me”, os seus discípulos aprenderam duas coisas básicas: “por um lado, não foram eles que escolheram seu mestre, foi Cristo quem os escolheu (Cf. 1Jo 4,10.19). E por outro lado, eles não foram convocados para algo (para purificar-se, aprender a Lei...), mas para Alguém, escolhidos para se vincularem intimamente à pessoa dele” (DA, n. 131; Cf. Mc 3,14).

Nessa mesma perspectiva, bem assevera Bento XVI: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Deus caritas est, n. 1; Cf. DA, n. 12). A partir daí formamos a Igreja-comunidade (Cf. At 2,47b; 4,32; 5,14). E os membros de uma comunidade, pelo batismo, são todos chamados e consagrados (ungidos com óleo como Jesus, o Cristo (“o ungido”: Lc 4,18-22; Cf. Is 61,1-2; 2Cor 1,21), para uma missão. Ou seja, deixamos de ser apenas discípulos(as), para sermos apóstolos(as); deixamos de ser meros objetos de ação pastoral, para nos tornar participantes ativos de evangelização (Cf. Lc 6,13), servidores do Evangelho.

Na verdade, “discipulado e missão são como as duas faces da mesma moeda. Quando o discípulo está apaixonado por Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só ele nos salva” (DA, n. 146; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 172). Portanto, a comunidade é a fonte e o fundamento da missão, da vida e do crescimento da Igreja toda. Isto porque “a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si... A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (João Paulo II. Chritifideles Laici, 32; Cf. DA, n. 163; Doc. da CNBB, 87, nn. 48-59 e 152).

Sabemos que a missão primária e fundamental da Igreja é evangelizar. Mas é preciso “anunciar o Evangelho de maneira tal que garanta a relação entre a e a vida tanto na pessoa individual como no contexto sócio-cultural em que as pessoas vivem, atuam e se relacionam entre si” (DA, n. 331; Cf. Doc. da CNBB, 87, nn. 7-8). Trata-se do verdadeiro anúncio de Jesus e do seu Reino, “que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção integral e a autêntica libertação cristã” (DA, n. 146; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 6).

Este brilhante ensinamento do Magistério eclesial é altamente importante para nós. Porque, atualmente, com a ascensão desenfreada de movimentos pentecostalistas e pentecostalizantes, nota-se uma proposital, maldosa e clara tendência de desarticular a fé da vida, de desencarnar Jesus e o seu Evangelho. No entanto, “a vida no Espírito não nos fecha em intimidade cômoda e fechada, mas sim nos torna pessoas generosas e criativas, felizes no anúncio e no serviço missionário” (DA, n. 285). Mais ainda, a nossa fé “nos capacita a assumir a missão de Jesus Cristo de realizar, na história, o Reino de Deus, proclamando-o com nossas palavras e testemunhando-o em nossa vida” (Doc. da CNBB, 87, n. 2), a exemplo do próprio Jesus (Cf. Doc. da CNBB, 87, nn. 5 e 54).

Face a isso, podemos seguramente dizer que, além de evangelizar, a Igreja também precisa ser evangelizada. Ela deve desenvolver a sua missão evangelizadora com humildade e com um diálogo aberto, sincero e positivo. E nesse diálogo, a Igreja é desafiada a comunicar bem, com uma linguagem fácil, atraente, contagiante e rica em símbolos, procurando fazer com que o Evangelho se encarne de fato na realidade, na história, na vida das pessoas. Lembro-me aqui das palavras de um famoso ator, cristão católico, recentemente falecido, referindo-se à evasão de fiéis da Igreja: “Em nosso trabalho, nós transmitimos uma mentira, uma ficção (seja novela, filme ou teatro) com um tom de verdade. Mas muitos na Igreja, transmitem a grande Verdade (Jesus), com um tom de mentira”. De fato, na boca de muitos, a mensagem não passa, não convence, não contagia, não muda a vida. Porque a mensagem acaba ficando carente de força necessária, de profetismo.

Em nosso contexto atual, inúmeros são os desafios à evangelização, como o aumento populacional, as enormes extensões territoriais, a escassez de evangelizadores, a indiferença religiosa, a falta de apoio afetivo e encorajador de muitos pastores, a secularização, o relativismo de valores, as perseguições e ataques até violentos aos anunciadores do Evangelho, entre tantos outros. Face a essa difícil realidade, o Magistério eclesial nos lança algumas luzes, que nos reacendem novo ardor, como por exemplo:

a) “A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias da vida. (...). Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo” (DA, n. 11);

b) “Não temos outro tesouro a não ser este (Jesus). Não temos outra felicidade nem outra prioridade senão a de sermos instrumentos do Espírito de Deus na Igreja para que Jesus Cristo seja encontrado, seguido, amado, adorado, anunciado e comunicado a todos, não obstante as dificuldades e resistências” (DA, n. 14);

c) “Anunciamos a nossos povos que Deus nos ama, que sua existência não é ameaça para o homem, que Ele está perto com o seu poder salvador e libertador de seu Reino, que ele nos acompanha na tribulação, que alenta incessantemente nossa esperança em meio a todas as provas” (DA, n. 30).

Posto isto, a Igreja na América Latina e Caribe está convocada a colocar-se em “estado permanente de missão” (DA, n. 551). Porque “só uma Igreja missionária e evangelizadora experimenta a fecundidade e a alegria de quem realmente realiza a sua vocação” (Doc. da CNBB, 87, n. 210). Assim, ninguém deve isentar-se dessa proposta, muito especialmente os fiéis “leigos”, os quais de fato “realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo de Cristão na Igreja e no mundo” (Lumen Gentium, n. 31). Realmente, “a evangelização do Continente não pode realizar-se hoje sem a colaboração dos fiéis leigos” (João Paulo II. Exortação Apostólica Ecclesia in America, n. 44). O anúncio de Jesus e do seu Reino, indiscutivelmente, é missão de todos nós.

Essa responsabilidade que recai sobre nós batizados, indistintamente, não pode ser vista como algo enfadonho, esmorecedor, desgregador. Seguramente, o desejo da Igreja é que a caminhada das comunidades se faça de forma ordenada evitando-se abusos, discriminações, arbítrios, etc.. Pois tal era o senso de co-responsabilidade reinante entre os cristãos do primeiro século: “de fato, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias” (At 15,28). Assim, faremos sempre valer uma sincera caridade pastoral.

Para concluir, lembrando que este é também o Mês do Rosário, peço a Deus que nos abençoe e que a Virgem do Rosário, “Maria, Mãe do Senhor, primeira evangelizada e primeira evangelizadora, nos inspire com seu exemplo de fidelidade e disponibilidade incondicional ao Reino de Deus e nos acompanhe com sua materna intercessão” (Doc. da CNBB, 87, n. 216). E que Sta. Terezinha do Menino Jesus, a “padroeira das missões”, nos ajude a responder firmemente como os discípulos de Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores” (Lc 9,57).

sábado, 9 de agosto de 2008

VOCAÇÃO: CHAMADOS PARA QUÊ?

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Estamos no mês de agosto, o “mês vocacional”. Ao longo dos domingos deste mês, a Igreja Católica no Brasil, como de costume, quer celebrar alguns aspectos da vocação cristã. No primeiro domingo, dia 3, a vocação ao ministério ordenado como presbítero; no segundo domingo, dia 10, a vocação à paternidade; no terceiro domingo, dia 17, a vocação à vida religiosa; no quarto domingo, dia 24, a vocação a ser catequista, isto é, pessoas que, como na origem da Igreja, a partir da catequese bíblica, buscam responder ao chamado do Senhor dedicando-se ao “ensinamento dos apóstolos” (At 2,42), para que a comunidade cresça na fé e no compromisso.

Quando ocorre de o mês de agosto ter cinco domingos, como neste ano, a Igreja reserva o quinto domingo, para homenagear todos os cristãos “leigos” (do grego laós: povo, gente, multidão. Cf. Mt 26,5; Jo 11,50; At 3,12; 15,14; Ap 5,9; 21,3), sobretudo os mais engajados, verdadeiros agentes de pastoral, pois na realidade “os fiéis leigos são homens e mulheres da Igreja no coração do mundo, e homens e mulheres do mundo no coração da Igreja” (DA, n. 209). Portanto, ser “leigo” não é nada depreciativo, mas é ser legitimamente membro do “povo” de Deus. Afinal, Jesus também era “leigo”, não pertencia a nenhuma linhagem ou casta sacerdotal, que nós chamamos de clero (do grego cléros: melhores). Jesus era gente do povo.

No segundo domingo deste mês, dia 10, o “Dia do pai”, a Igreja dará abertura a “Semana da Família”, que se encerrará no domingo seguinte, com a festa da “Assunção de Nossa Senhora”. Neste ano, o subsídio proposto pela CNBB traz como tema: “Família, santuário da vida”, e como lema: “Escolhe, pois, a vida”. Neste subsídio, cada família reunida é animada a refletir e a rezar a partir de temas bem concretos ao longo da semana: a) “Família, santuário da vida”; b) “A vida é dom de Deus”; c) “Família, escola da humanização”; d) “Família, escola da fé”; e) “Família, primeira comunidade-igreja”. Ao final da semana, há uma sugestão litúrgica: “Celebrar a vida em família”.

Por aí vemos que, além da vida, a vocação nasce na família. Mas diante de tantos conflitos pelos quais passam as famílias atualmente, nos perguntamos com João Paulo II: “Como fechar os olhos para as grandes situações em que concretamente se encontram numerosíssimas famílias entre vós e para as sérias ameaças que pesam sobre a família em geral?” Porque, continua ele, “a salvação da pessoa e da sociedade está estreitamente ligada ao bem-estar da família” (DP, n. 573).

Em face desta questão surgiram muitas iniciativas com o intuito de atender a este apelo, como a Pastoral dos Noivos, a Pastoral Familiar, os Encontros de Casais, os Grupos de Mulheres, os Grupos de Reflexão, a Pastoral Vocacional, etc. Além disso, no Documento de Aparecida, os bispos apresentam uma boa reflexão sobre “A boa nova da família” (DA, nn. 114-119). Também uma ótima abordagem sobre “A pessoa e a família” nós encontramos nas novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (Documento da CNBB, 87, nn. 128-136).

Voltando ao tema fundamental deste artigo, todos nós sabemos que vocação é um “chamado” (do latim vocare: chamar, convidar, convocar). Podemos discorrer sobre vocação sob três aspectos principais:

a) Vocação humana. Todos nós somos chamados à vida, à saúde, ao trabalho, à família, à paternidade/maternidade, à liberdade, à realização, etc.. E dentro deste aspecto, podemos falar da pessoa vocacionada em três perspectivas básicas: a psicológica: para vários teóricos da vocação (Rogers, Erickson, Holland) a auto-realização é a motivação fundamental que está na raiz de qualquer escolha vocacional; a antropológica: o “dever-ser” ou o “dever agir” corresponde ao “ser” da realidade humana; e a moral: esta visão ética da pessoa leva à descoberta e à construção de um humanismo ético (agir bem). A preocupação atual recai sobre o ser humano, pois “todas as coisas existentes na terra são ordenadas ao homem como a seu centro e ponto culminante” (GS, n. 235). É aí que a pessoa desenvolve seu senso de autonomia e responsabilidade. Assim, o que constitui a grandeza do ser humano é a dimensão ética da existência: capacidade de dizer não à sua vontade de poder e prazer, para se abrir ao outro (alteridade).

b) Vocação pessoal. Neste aspecto, cada indivíduo, cristão ou não, se sente impelido a uma missão específica, baseada na alteridade e na gratuidade, em vista do bem comum, seja na Igreja ou na sociedade.

c) Vocação cristã. Na qualidade de cristão, cada um é convidado a assumir a missão de Jesus Cristo. Neste feitio, a missão é o elemento essencial da vocação. Segundo a Bíblia, quando alguém é chamado por Deus, consecutivamente é chamado para alguma coisa. Sempre recebe de Deus uma missão (Cf. Is 61,1-2; Jr 1,4-10; etc.).

Oportunamente, costumamos distinguir e assim definir os termos “vocação” e “profissão”. A profissão está ligada diretamente a uma habilidade profissional, como forma de sustentar a vida. A vocação, por outro lado, está sempre dentro de um contexto de aliança, isto é, proposta de Deus e resposta do ser humano, o que exige sempre uma disposição para uma missão ou serviço (voca + ação: chamado para servir) a favor de Jesus e do seu Reino.

A vocação cristã acontece desde o momento que procuramos responder ao chamado de Jesus que diz: “Sigam-me” (Mc 1,17; Mt 4,19). A partir daí formamos a Igreja. A Igreja é uma “comunidade” (Cf. At 2,42-47; 4,32-35; 5,12b-14). E os membros de uma comunidade, pelo batismo, são todos chamados e consagrados, ou seja, ungidos com óleo como Cristo (Cf. Lc 4,18-22; 2Cor 1,21) e enviados para uma missão (Cf. Mt 4,18-22; Mt 10,5-14; Mc 1,16-20; Mc 3,13-15; Mc 6,6b-13; Lc 9,1-6; Lc 10,1-3).

A comunidade é a fonte e o fundamento da vocação e missão, da vida e do crescimento da Igreja. Na comunidade cada membro torna-se igualmente responsável pela evangelização; pela construção do Reino de Jesus; pelas crianças, adolescentes e jovens; pelas famílias; pelos idosos e enfermos; pela justiça social; pela libertação dos pobres e oprimidos; pela ecologia; pela defesa do nosso planeta; etc..

É na comunidade, a partir dela e por ela que se desperta e se desenvolve a vocação de cada pessoa, ou seja, os “ministérios” e “carismas” (Cf. 1Cor 12,4-11). Na comunidade de fé, cumprimos várias funções: uns convidam as pessoas; outros arrumam o ambiente para as reuniões ou celebrações; outros lêem a Bíblia; outros animam os cantos; outros cuidam dos idosos ou dos enfermos; outros visitam as famílias; outros assumem a catequese; outros presidem as celebrações eucarísticas, ou seja, os ministros ordenados, os presbíteros. Todas as funções colocadas a serviço.

Assim, de um jeito ou de outro, como cristão leigo(a), como religioso(a), ou como ministro ordenado (padre), todos nós exercemos funções importantes e necessárias, com a mesma e igual dignidade. Não existe uma única função. Pois a principal função, como nos ensina o apostolo Paulo, fazendo jus ao “Ano Paulino”, é a da “caridade” (1Cor 13,13), “o dom mais alto” (1Cor 12,31a) que o Espírito nos concede. De fato, sem viver na prática esse amor despojado como razão da nossa vocação, por mais qualidades, dons e carismas que nós tenhamos, “nada disso nos adiantaria” (1Cor 13,3). Porque a caridade é “o amor que eu quero” (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7), como o próprio Deus nos pede. E isso cabe a todos nós, vocacionados e vocacionadas. Pois “em Jesus Cristo, o que conta (...) é a fé que age por meio do amor” (Gl 5,6). Portanto, “devemos apostar na caridade” (NMI, n. 49).

Para concluir, peço sobre todos a bênção de Jesus, que “sendo o Mestre e Senhor, lavou os pés dos seus discípulos” (Jo 13,14a) e nos deixou este gesto como desafio: “Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15). E que a Virgem Maria, a vocacionada do Pai, nos ajude a responder “Sim” ao chamado de Deus com a sua mesma coragem e firmeza: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa Palavra” (Lc 1,38).

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A MISSÃO UTÓPICA DE JESUS: POR QUE ELE VEIO?

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas (necessidades humanas básicas) vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). Com essas palavras Jesus ensina aos “bem-aventurados” no “sermão do monte”, a se abrirem confiantes à Providência de Deus, e nelas eu me inspirei a escrever este artigo.

A “boa nova” que Jesus proclamou ao longo de toda a sua vida neste mundo, os evangelhos sinóticos a resumem no anúncio da proximidade do “Reinado” ou “Reino de Deus” (Cf. Mc 1,14-15; Mt 4,17.23; Lc 4,43). Essas duas expressões, embora com tons cambiantes, designam uma realidade nova, isto é, a sociedade humana alternativa capaz de gerar vida e felicidade. A primeira expressão, “o Reinado de Deus”, parte do ponto de vista da ação de Deus sobre o ser humano, indivíduo e comunidade; a segunda, “o Reino de Deus”, exprime os indivíduos e as comunidades que já vivem e experimentam a ação divina na história, pois, como vemos, “o Reino de Deus já chegou a vós” (Mt 12,28).

Porém, como resquício do passado, ainda hoje o “Reinado de Deus” é identificado com a felicidade eterna depois da morte, com a realidade escatológica definitiva. Mas a verdadeira escatologia (do grego eskhatón: fim último, derradeiro) aponta não só para o fim da nossa existência neste mundo, mas também para o fim de tudo o que prejudica a vida aqui. Portanto, o “Reinado de Deus” acontece na história e o “Reino de Deus” deve ser uma realidade dentro dela. Trata-se, então, de algo “que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu” (DA, n. 19). Nesse processo, vamos viver constantemente a tensão entre o já e o não-ainda. A expressão “Reino de Deus” é judaica, usada sobretudo na época intertestamentária (preexistente aos evangelhos) e significava para o judaísmo uma realidade social, que praticamente deveria se cumprir na época messiânica. Nela, Israel formaria uma sociedade justa, viveria na fidelidade a Deus e dominaria seus inimigos.

No Segundo Testamento encontramos os dois aspectos dessa nova realidade: o aspecto individual, que exige a mudança pessoal, “o homem e mulher novos” (Cf. Jo 3,3-6), e o social, que implica a mudança das relações humanas, a “sociedade nova”, radicalmente nova (não renovada = reformada): “céu novo e nova terra” (Cf. Ap 21). De fato, não haverá nova sociedade se não existir “o homem e mulher novos”. A realização individual do Reino, a constituição do “homem e mulher novos”, ocorre quando a pessoa, pela assimilação da mensagem de Jesus, decide entregar-se aos outros, como se vê nesta parábola do Reino: “O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente na terra: ele dorme e acorda, de noite e de dia, mas a semente germina e cresce, sem que ele saiba como” (Mc 4,26-27).

Como resposta a esta entrega do homem e da mulher, Deus os fortalece comunicando-lhes sua própria “força” de vida, o Espírito: “Eis que eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto (Lc 24,49).

Dotados desta “força do Alto”, o homem e a mulher tornam-se responsáveis pela criação de uma sociedade verdadeiramente justa e humana. Podemos perceber com clareza a característica da justiça social do Reino, na parábola do grão de mostarda: o Reino de Deus “é como um grão de mostarda: quando é semeado na terra, é a menor de todas as sementes do mundo; mas depois de semeada, cresce e torna-se a maior que todas as hortaliças, e dá grandes ramos, de modo que, à sua sombra, as aves do céu podem fazer seus ninhos” (Mc 4,31-32; Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Nesta parábola, Jesus desmonta o ideal de grandeza das profecias sobre o Reino (Cf. Ez 17,22-24) para afirmar a existência do Reino de Deus como uma realidade inicialmente modesta, mas visível e vigorosa, dentro da sociedade humana.

Ainda dentro dos aspectos individual e social do “Reno de Deus”, o evangelista Mateus apresenta três parábolas bastante ilustrativas: a do fermento: “O Reino dos Céus é comparável ao fermento que uma mulher põe em três medidas de farinha, de tal forma que a massa toda fica fermentada” (Mt 13,33; Cf. Lc 13,20-21); a do tesouro: “O Reino dos Céus é comparável a um tesouro que estava escondido num campo e que um homem descobriu: ele o esconde novamente, e, em sua alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo” (Mt 13,44); e a da pérola preciosa: “O Reino dos Céus é ainda comparável a um comerciante que procurava pérolas finas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, foi vender tudo o que tinha e comprou-a” (Mt 13,45-46). Concluímos daí que não se faz parte do Reino por simplesmente pertencer a uma raça ou a uma nação, como na velha concepção judaica, mas por decisão e opção pessoal do ser humano; e isso é aberto a todos, indistintamente.

Na verdade, “o discípulo, à medida que conhece e ama o seu Senhor, experimenta a necessidade de compartilhar com outros a sua alegria de ser enviado, de ir ao mundo para anunciar Jesus Cristo, morto e ressuscitado, e tornar realidade o amor e o serviço na pessoa dos mais necessitados, em uma palavra, a construir o Reino de Deus” (DA, n 278e). Ou seja, “a paixão pelo Reino de Deus nos leva a desejá-lo cada vez mais presente entre nós” (Doc. da CNBB, 87, n 213).

Porém, ainda hoje muitos consideram que a vida presente não tem importância para o cristão, como se ela estivesse meramente subordinada à consecução da vida futura. Isto provavelmente devido a uma má interpretação de um trecho do Quarto Evangelho, traduzido como “meu Reino não é deste mundo (Jo 18,36a). Por isso, a tradução correta dessa passagem precisa ser deduzida do contexto. Quando Pilatos pergunta a Jesus: “Tu és o rei dos judeus?” (Jo 18,33), Jesus responde-lhe dizendo: “A minha realeza não é deste mundo. Se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam combatido para que eu não fosse entregue às autoridades dos judeus. Mas a minha realeza, agora, não é daqui (Jo 18,36).

Na sua resposta, Jesus distingue claramente a qualidade da sua realeza. É uma realeza que não oprime, que não se apóia na prepotência e nem na violência, como as monarquias da época, escoradas na força das armas. Portanto, a frase discutida fica mais bem traduzida assim: “a minha realeza não pertence a esta ordem vigente, a este estado de coisas”. Jesus é rei, mas um rei que comunica a liberdade e a vida, chegando a dar a sua própria vida para que viva a humanidade. E esta ação se verifica na história. Esta é a verdadeira utopia (do grego uktopós: literalmente: não-lugar) de Jesus: a sua realeza começa a acontecer já, aqui na terra, de outro jeito, não se servindo das estruturas deste mundo mundanizado, perverso.

Quanto ao mais, é evidente que no seu ensinamento, Jesus apresenta o Reino como uma realidade que cresce, se desenvolve e muitas vezes encontra dificuldades e oposições, como se vê na parábola do joio e do trigo (Cf. Mt 13,24-30.36-43). Sabemos que a coexistência do “trigo” e do “joio” é inevitável na sociedade humana. Se Jesus diz que não podemos arrancar o “joio”, pois podemos danificar o “trigo”, vamos ao menos saber “podá-lo”, e confiar que Deus fará a triagem verdadeira e definitiva depois. E isto começa a ocorre necessariamente em nossa história. Por tal razão, não se pode “conceber um cristão que não colabora no anúncio e na realização do Reino de Deus na história humana” (Doc. da CNBB, 87, n 57; Ibidem, n 2).

É evidente que o “Reino de Deus” não se regionaliza, não se resume a este ou àquele aspecto, como ensina o próprio Jesus: “Não se poderá dizer: “Ei-lo aqui! Ei-lo ali, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21). Mas é possível apontarmos alguns “sinais evidentes da presença de Deus: a vivência pessoal e comunitária das bem-aventuranças, a evangelização dos povos, o conhecimento e o cumprimento da vontade do Pai, o martírio pela fé, o acesso de todos os bens da criação, o perdão mútuo, sincero e fraterno, aceitando a riqueza da pluralidade e a luta para não sucumbir à tentação e não ser escravo do mal” (DA, n 383). Também “a busca e o acolhimento de todos, em especial dos que experimentam alguma forma de exclusão, é sinal do Reino de Deus” (Doc. da CNBB, 87, n 115).

Por outro lado, não fica difícil perceber também alguns sinais do “anti-reino”, pois “as condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e dor, contradizem a esse projeto do Pai e desafiam os cristãos a maior compromisso a favor da cultura da vida. O Reino da Vida que Jesus veio trazer é incompatível com essas situações desumanas. Se pretendemos fechar os olhos diante dessas realidades, não somos defensores da vida do Reino e nos situamos no caminho da morte” (DA, n 358; Doc. da CNBB, 87, n 51).

Assim sendo, o “nosso serviço pastoral à vida plena (...) exige que anunciemos Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas” (DA, n 95), ou seja, exige que “demos testemunho de Cristo e dos valores do Reino no âmbito da vida social, econômica, política e cultural” (DA, n 212).

O “Reino de Deus” representa, portanto, a alternativa para a sociedade injusta, proclama a esperança de vida nova, afirma a possibilidade de mudança e formula a utopia. Por isso, a partir de Jesus, o “Reino de Deus” constitui a melhor notícia (boa nova) que se pode anunciar à humanidade e a oferta permanente de Deus aos homens e mulheres que espera deles uma resposta firme e decidida. Assim, a Realização do “Reino” é sempre possível.

Obviamente, o primeiro passo para a criação desta nova sociedade é a mudança de vida que Jesus pede em ligação com o anúncio do Reino: “Cumpriu-se o tempo, e o Reinado de Deus tornou-se próximo: convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1,15). Sem mudança profunda de atitude por parte do homem e da mulher, que os levem a romper com o passado de injustiça, não há possibilidade alguma de começar algo novo.

Por isso, Pedro interpela os seus ouvintes: Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo. E salvai-vos dessa geração corrompida (At 2,38.40b).

A exortação à “conversão”, portanto, mostra que para se tornar realidade, o “Reino de Deus” conta com a colaboração de todos. A conversão é passo preliminar, que exige descontentamento e indignação com a situação vigente ruim, tanto em nível individual quanto em nível social. Mas a opção do homem e da mulher pelo “Reino de Deus” não pára na ruptura com a injustiça; supõe ainda um desejo de mudança, um compromisso pessoal. Somente os que sentem esta inquietação e se comprometem, atenderão positiva e dignamente ao convite de Jesus: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34).

Para concluir, peçamos de Deus a graça de nos mantermos sempre na trajetória de Jesus, o nosso paradigma fundamental e inquestionável, a fim de construirmos, juntos, nesta terra, o desígnio de Deus, a vontade” do Pai, o Reino da Vida. E façamos isso, em clima de oração, conforme Jesus mesmo nos ensinou: “Pai, venha o teu Reino” (Mt 6, 10a; Lc 11,2).

domingo, 15 de junho de 2008

AS DIRETRIZES GERAIS... (DOC. DA CNBB, 87)

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Na 46ª Assembléia Geral, realizada de 2 a 11 de abril, os bispos do Brasil aprovaram as novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE), traçando o objetivo geral para o triênio 2008 – 2010: “Evangelizar, a partir do encontro com Jesus Cristo, como discípulos missionários, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, promovendo a dignidade da pessoa, renovando a comunidade, participando da construção de uma sociedade justa e solidária, ‘para que todos tenham vida e a tenham em abundância’ (Jo 10,10).”

O documento foi elaborado a partir de três capítulos: a realidade que nos interpela; discípulos missionários numa Igreja em estado permanente de missão; pistas de ação para a missão evangelizadora. Neste escrito, com o intuito de oferecer esta singela contribuição aos meus leitores, vou ater-me às “pistas de ação pastoral”, expondo-as numa visão geral e direta, dentro dos "três âmbitos de ação", porque são elas que levarão à construção do "novo", sinal do Reino de Deus.


1° ÂMBITO DE AÇÃO: PROMOVER A DIGNIDADE DA PESSOA (nn. 103-149)

O desafio: a construção da identidade pessoal e da liberdade autêntica na atual sociedade. A Palavra como fundamento e critério de ação: “Filhos de Deus, nós o somos” (1Jo 3,2).

PISTAS DE AÇÃO PASTORAL MAIS URGENTES:

a) A pessoa: testemunho, busca, acolhimento e acompanhamento (nn. 115-119): Ir a todas as pessoas, a cada pessoa, às pessoas integralmente. A busca e o acolhimento é sinal do Reino de Deus; Acolher com atenção personalizada, o que é uma dimensão importantíssima do ministério ordenado, à qual ele é chamado; Estar preparados para o encontro e a escuta no momento em que se fizerem necessários; Buscar e criar momentos específicos de visita, escuta, aconselhamento e oração; Criar oportunidades de práticas solidárias ou participação em projetos comuns, de doação gratuita a serviço dos irmãos; Visitar os demais ambientes, além das residências das famílias, como: locais de trabalho, moradia de estudantes, favelas, cortiços, alojamentos de trabalhadores, prisões, albergues, os que moram em situação de rua, etc..

b) A pessoa e as diversas situações de vida (nn. 120-127): Lembrar as crianças, sinal vivo dos que acolhem o Reino de Deus, sobretudo as vítimas da pobreza e da exclusão; Acompanhar a infância desde o direito ao nascimento aos primeiros anos de vida. Destaca-se aí o trabalho da Pastoral da Criança, que encaminha aos grupos de iniciação eucarística, ao ensino religioso, até chegar a Infância Missionária; Acolher melhor e com sincero amor os adolescentes e jovens, pois estão entre os mais expostos aos efeitos da pobreza, como: drogas, prazer, álcool, violência, propostas religiosas e pseudo-religiosas, educação de baixa qualidade, etc.; Renovar a opção afetiva e efetiva de toda a Igreja pela juventude, considerando as ricas indicações do Doc. da CNBB, 85); Subsidiar famílias, escolas, paróquias, pastorais e outras entidades com propostas de educação na área da afetividade e da sexualidade em relação às crianças, adolescentes e jovens; Respeitar e valorizar os idosos pela Pastoral da Pessoa Idosa, e não considerá-los como peso ou carga; Valorizar as mulheres e superar a mentalidade machista, pois elas têm, igual ao homem, dignidade e responsabilidade; Impulsionar uma organização pastoral que promova ainda mais o protagonismo (= que conduz por primeiro) das mulheres; Garantir a efetiva presença das mulheres nos ministérios confiados aos leigos, assim como no planejamento e decisão; Apoiar leis e políticas públicas que harmonizem a vida de trabalho das mulheres com os seus deveres de mãe de família; Usar de criatividade para acolher os homens, tirá-los da margem da Igreja e auxiliá-los no engajamento comunitário.

c) A pessoa e a família (nn. 128-136): Ajudar a família, “patrimônio da humanidade”, por uma Pastoral Familiar intensa e vigorosa; Conscientizar os pais no dever de transmitir a fé e dar testemunho aos filhos, na qualidade de primeiros catequistas; Auxiliar, à luz do Evangelho, as famílias a viverem suas alegrias e dores, bem como a prática efetiva dos valores cristãos; Preparar com seriedade para o matrimônio, desde o namoro e o noivado, e acompanhar depois os novos casais; Acolher, acompanhar e incentivar os casais em segunda união e seus filhos, segundo as orientações do Magistério; Cobrar políticas públicas, efetivas e duradouras, em prol do bem-estar das famílias; Tomar iniciativas de solidariedade em relação a pessoas, famílias e grupos que sofrem, pela miséria, pela fome, etc.; Estimular grupos de apoio às famílias que perderam seus entes queridos em situações de aguda violência; Enfatizar a importância da presença do homem, do pai, na família, como direito dos filhos de terem o pai em casa.

d) A pessoa, o trabalho e a moradia (nn. 137-141): Acompanhar a vida dos trabalhadores e trabalhadoras, através das Pastorais e Movimentos ligados ao mundo do trabalho; Dar especial atenção aos migrantes e refugiados, criando estruturas nacionais e diocesanas para acompanhá-los e empenhar-se junto aos organismos da sociedade civil, a fim de que se leve em conta os direitos das pessoas em mobilidade; Dar particular atenção aos itinerantes, como: marítimos, pescadores, caminhoneiros, ciganos, circenses, e parquistas; Desenvolver e incrementar uma criativa e articulada Pastoral do Turismo, em vista das pessoas em mobilidade.

e) A pessoa, a pobreza, a exclusão e as ameaças à vida (nn. 142-146): Acompanhar pela Pastoral Social os “novos rostos da pobreza”, fortalecendo a “opção pelos pobres”; Assumir atitudes e práticas na “opção e defesa da vida”, como as pastorais da sobriedade e de prevenção ao HIV; Favorecer o acolhimento das pessoas com deficiência, assegurando-lhes o direito à evangelização e à acessibilidade.

f) A pessoa, a oração e a celebração (nn. 147-149): Educar a pessoa para a oração pessoal, familiar, comunitária e litúrgica, levando-a a orar em qualquer ambiente e hora; Facilitar o direito dos fiéis à participação nos sacramentos, sacramentais e demais atos de piedade cristã.


2° ÂMBITO DE AÇÃO: RENOVAR A COMUNIDADE (nn. 150-175)

O desafio: a fragmentação da vida e a busca de relações mais humanas. A Palavra como fundamento e critério de ação: “Onde dois ou três estiverem reunidos, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20).

PISTAS DE AÇÃO PASTORAL MAIS URGENTES:

a) Diálogo dentro das comunidades (nn. 153-161): Mostrar estima uns pelos outros, dentro da comunidade, pelo princípio de que todos são irmãos e iguais em dignidade; Tornar as Paróquias sempre mais comunidades vivas e dinâmicas, de discípulos missionários de Jesus Cristo; Valorizar ainda mais as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e outras formas associativas. Esse fato indica a necessidade de outras estruturas comunitárias além da paróquia tradicional; Reformular as estruturas paroquiais para que sejam rede de comunidades e grupos, capazes de se articular, conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos missionários de Jesus Cristo, em comunhão; Setorizar as paróquias em unidades territoriais menores. Torna-se cada vez mais urgente e interpelador o fato de que nenhuma comunidade deve se isentar de entrar decisivamente, com todas as suas forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé. E “só um sacerdote apaixonado pelo Senhor pode renovar uma paróquia” (DA, n. 201); Valorizar, junto com as CEBs, outras formas válidas de pequenas comunidades, de movimentos, de grupos de vida, de oração e de reflexão da Palavra de Deus, pois também são chamados a ser fermento do amor de Deus na sociedade; Observar os critérios indicados pelo Magistério da Igreja para que um grupo, uma pequena comunidade ou um movimento de fiéis leigos possa se considerar autenticamente eclesial (Cf. João Paulo II. Christifideles Laici, n. 30); Acolher a riqueza evangelizadora presente na religiosidade popular. É um catolicismo profundamente inculturado na vida de nosso povo, maneira legítima de viver a fé, modo de sentir-se Igreja e forma de ser missionário; Estimular com urgência a Pastoral Bíblica, a través de cursos, escolas e outros modos de contato com a Palavra de Deus.

b) Comunidade, dons, serviços e ministérios (nn. 162-164): Empenhar por uma efetiva participação de todos nos destinos das comunidades, pela diversidade de carismas, serviços e ministérios, alimentados pela Palavra de Deus anunciada com força querigmática, garantindo sólida espiritualidade; Descobrir e integrar os talentos e carismas escondidos e silenciosos, com os quais o Espírito presenteia os fiéis; Fazer urgentemente um planejamento comunitário de suas ações evangelizadoras, criando assim um esteio de unidade; Planejar a ação evangelizadora, destacando três aspectos: a diversidade ministerial (o trabalho em comunhão manifesta a única Igreja de Cristo), a formação dos conselhos (nos âmbitos pastoral, administrativo e financeiro), e a articulação das ações evangelizadoras (só uma Pastoral de Conjunto ou Orgânica - não uniformista -, é capaz de testemunhar a unidade).

c) Comunidades que dialogam (nn. 165-171): Fazer transbordar o diálogo que há na comunidade cristã rumo a quem ainda não pertence à ela (ser sal, luz e fermento); Ter sensibilidade à presença e atuação do Espírito nos diversos ambientes, horizontes, religiões e culturas; Evitar a indiferença na busca da unidade e a posição preconcebida ou o derrotismo que tendem a ver tudo como negativo; Perseverar no caminho do diálogo ecumênico, pois a divisão entre cristãos permanece como escândalo a nos interpelar; Assumir algumas iniciativas, como: estar bem preparados para “dar as razões de nossa fé e esperança”; Realizar cursos e escolas de ecumenismo, recuperando a força do Batismo como fonte de união e fraternidade; Estabelecer encontro fraterno e respeitoso, através do diálogo inter-religioso com os seguidores de religiões não-cristãs, como os judeus e muçulmanos, nossos irmãos na fé monoteísta; Estender o diálogo inter-religioso aos mundos afro-descendente e indígena, e aprofundar no diálogo com os ateus; Superar a violência, inclusive a de motivação religiosa (fanatismo, fundamentalismo), e trabalhar pela paz e pela vida; Desenvolver bem mais a oração em comum, tanto no diálogo e convívio ecumênico quanto no inter-religioso; Estudar as novas tendências religiosas, as demais Igrejas cristãs e tradições não-cristãs, mesmo quando o diálogo é difícil.

d) Comunidade essencialmente missionária (nn. 172-175): Sair de si e tornar-se cada vez mais missionário. Tal desafio cabe não só a cada um, mas às próprias comunidades; Deixar-nos conduzir à urgência de uma ação missionária planejada, organizada e sistemática; Largar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam mais a transmissão da fé. Trata-se de uma conversão pastoral; Ir além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária (forte comoção: DA, n. 362); Buscar os primeiros destinatários, que são os católicos afastados e indiferentes à riqueza da vida comunitária; Ir ao encontro dos que aceitam Jesus Cristo e a Igreja, mas deixaram a comunidade, por inúmeras razões (DA, 225-226); Estabelecer contato pessoal, diálogo, presença amiga, fraterna e solidária, para o resgate dessas pessoas à comunidade; Assumir efetivamente, além da transformação da Paróquia, a conversão pastoral que a Igreja hoje nos solicita; Comprometer-nos com a missão além-fronteiras, em outras regiões e ambientes, onde o anúncio se faz mais urgente; Desburocratizar a ação, pelo contato direto com as pessoas, grupos e povos, a partir da experiência das Igrejas irmãs; Acolher, no coração, na reflexão e na vida, o profundo sentido de uma Igreja, toda ela, ministerial e missionária; Assumir uma pedagogia que valorize e ponha em destaque esse novo modo de coordenar e de viver, a fim de que haja efetiva participação dos cristãos leigos e leigas na vida da comunidade e em sua missão evangelizadora.


3° ÂMBITO DE AÇÃO: CONSTRUIR UMA SOCIEDADE SOLIDÁRIA (nn. 176-209)

O desafio: o escândalo da exclusão e da violência na sociedade consumista nos interpela à realização da solidariedade. A Palavra como fundamento e critério de ação: “Não havia necessitado entre eles” (At 4,34).

PISTAS DE AÇÃO PASTORAL MAIS URGENTES:

a) Compromisso solidário (nn. 182-186): Tomar iniciativas de solidariedade especialmente em relação aos mais gravemente atingidos pela exclusão; Tornar possível o acolhimento a partir do contato interpessoal efetivo, em face das necessidades humanas básicas; Manter o Mutirão para a superação da miséria e da fome, assim como as diversas iniciativas nesse campo; Apoiar, segundo a Doutrina Social da Igreja, a organização dos movimentos sociais ou populares; Valorizar o voluntariado, tanto nas organizações católicas quanto nas Organizações Não-governamentais (ONGs); Ter consciência de que a doação imediata e necessária à sobrevivência não abrange a totalidade da opção pelos pobres.

b) Compromisso social e político (nn. 187-190): Incentivar cada vez mais a participação social e política dos cristãos leigos e leigas nos diversos níveis e instituições; Estimular a participação em campanhas e demais atividades que busquem efetivar a pacificação do bairro ou da região; Empenhar na busca de políticas públicas que dêem condições necessárias ao bem estar de pessoas, famílias e povos; Acompanhar a ação do Legislativo, Executivo e Judiciário, para evitar a corrupção, a impunidade, o prejuízo ao bem comum; Apoiar políticas que visam superar as desigualdades históricas, tais como as cotas estudantis e para concursos públicos; Aprovar as diferentes iniciativas de economia solidária, na busca do desenvolvimento local sustentável e solidário.

c) Compromisso missionário nos novos areópagos (n. 191): Assumir as novas realidades - novos areópagos - que marcam o povo brasileiro, e para onde a atenção evangelizadora se deve voltar, como: o mundo das culturas, a realidade urbana, o mundo da educação, os meios de comunicação, etc..

d) Diálogo com as culturas (nn. 192-199): Apoiar iniciativas ecumênicas, em âmbito religioso e civil, e estabelecer parcerias em vista à difusão da solidariedade; Amparar políticas públicas que favoreçam a inclusão social e os direitos das populações de origem indígena e africana; Conhecer bem a cultura globalizada e, em certo sentido, assumi-la, com uma linguagem compreendida por todos; Denunciar os modelos antropológicos que afastam a pessoa humana de sua centralidade na vida; Anunciar Jesus Cristo como verdade e modelo último do ser humano; Empregar esforços na evangelização de pensadores e de pessoas que estejam em níveis de decisão na sociedade civil; Dialogar sobre as grandes questões éticas, para que a sociedade saiba escolher entre a insensatez e a racionalidade; Eliminar a “estrutura de morte” com a “cultura da vida e da solidariedade”, como imperativo que cabe o a todos nós; Educar a comunidade eclesial na Doutrina Social da Igreja como decorrência ética imprescindível da própria fé cristã; Levar a ética social cristã, inspirada no Evangelho, a ocupar lugar de destaque nos programas de formação e na pregação; Educar os discípulos missionários através da formação na ação, como: Campanha da Fraternidade; escolas de fé e política; Comissão de Justiça e Paz; Fóruns das Pastorais Sociais; Semana Social; Grito dos Excluídos; Cáritas; campanhas eleitorais, etc.; Tornar mais efetiva e dinâmica a partilha de recursos materiais, mantendo a identidade cristã e o mistério da koinonia (= comunhão).

e) Crescente urbanização (n. 200): Criar estruturas eclesiais novas a fim de enfrentar o fenômeno da urbanização e as novas formas de cultura em gestação; Assumir prioridades, como: organizar pastoral adequada; setorizar as paróquias; multiplicar as comunidades nas periferias e em ambientes específicos; Definir estratégias para chegar aos condomínios fechados e prédios residenciais; participar nos centros de decisão da cidade; Elaborar uma pastoral comum entre paróquias vizinhas; acolher os que chegam à cidade.

f) Mundo da educação (nn. 201-205): Assumir o mundo da educação, tanto nas escolas católicas como nas demais escolas, colégios e universidades; Formar professores de ensino religioso confessional para as escolas públicas, verdadeiros novos areópagos; Desenvolver projetos educativos centrados na pessoa humana, em vista de uma sociedade justa, solidária e fraterna; Rever a ação evangelizadora nas Universidades Católicas, para formar profissionais com autêntica vivência do Evangelho; Empenhar-se em outros espaços de educação, para que se cresça nos valores morais e no conhecimento e amor a Deus.

g) Mundo de comunicação (n. 206): Utilizar os meios de comunicação com mais desempenho, competência e profetismo, para o anúncio do Reino de Deus; Incentivar e animar a Pastoral da Comunicação, a fim de contribuir na integração entre as demais pastorais.

h) Compromisso com as questões que envolvem toda a humanidade (nn. 207-209): Assumir as grandes questões da justiça internacional, como: a ética na política; o bem comum; fontes de trabalho para os excluídos; justa regulação da economia; tratados sobre o livre comércio; aquecimento global; integração de refugiados.

Para concluir, sirvo-me das palavras dos próprios bispos: são estas “as pistas de ação pastoral que guiarão a Igreja no Brasil para os próximos anos”. Realmente, são excelentes inspirações que, uma vez assumidas por cada um de nós e por todas as comunidades, certamente “em Cristo” Jesus as “coisas antigas” darão lugar a uma “realidade nova” (2Cor 5,17), tanto eclesialmente quanto socialmente, pois é o Deus Trindade quem nos garante: “Eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5) Portanto, não caminhamos sozinhos. A Trindade Divina está conosco e também nos acompanha dia a dia a Virgem Maria com a sua materna intercessão.



sexta-feira, 30 de maio de 2008

"FELIZES OS PUROS DE CORAÇÃO" (Mt 5,8)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
Para nós, cristãos católicos, o mês de junho é dedicado ao “Sagrado Coração de Jesus”. Esta devoção nasceu com S. João Eudes, em 1672, e foi largamente difundida por Sta. Margarida Maria Alacoque, em 1675. No ano de 1856, o papa Pio IX prescreveu-a para a Igreja inteira, fixando-a na terceira sexta-feira, após a festa de Pentecostes.

A partir desta devoção tão popular, perguntamos: como viver hoje, na prática, os mesmos sentimentos e gestos de Jesus, brotados do seu coração? Como realizar o essencial do Evangelho e do cristianismo? S. João Eudes disse: “deves ter com Jesus um só espírito, uma só alma, uma vida, uma vontade, uma intenção, um só coração. E ele será teu espírito, coração, amor, vida, e tudo o que é teu” (Tratado sobre o admirável Coração de Jesus). Como concretizar isso?

Em nível social, político e econômico, nosso planeta está vivendo as conseqüências drásticas da globalização. Se, por um lado este fenômeno é tomado “como ‘uma conquista da família humana’, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças”, por outro, “lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. (...) Esse caráter peculiar faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade,a justiça, o amor, e muito especialmente a dignidade e o direito de todos” (DA, n. 60-61; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 24).

Face a isso, uma recente e triste estatística mostra que “a metade pobre da população brasileira ganha em soma quase o mesmo valor (12,5% da renda nacional) que os 1% mais ricos (13,3% da renda nacional)” (SICSÚ, João; PAULA, Luis Fernando; e RENAUT, Michel. Por que um novo desenvolvimentismo? Jornal dos Economistas, São Paulo, janeiro de 2005, n. 186). É bom lembrar que a metade da população brasileira atualmente é de cerca de 90 milhões.

E em âmbito eclesial, tanto a teologia como a espiritualidade também vivem grandes crises. Mas são crises que acrisolam, que purificam. Paradoxalmente, quanto mais nos afastamos da origem da teologia e da espiritualidade, mais sentimos a sua necessidade. Sabemos que o cristianismo sempre sobreviveu, desde a sua origem, aos grandes conflitos que geraram os mártires Pedro, Paulo, Estevão, etc., passando pela Idade Média, com Sto. Agostinho, Sto. Tomás de Aquino, S. Boaventura, S. João Crisóstomo, etc.. E como “em toda a sua história, nas últimas décadas, a Igreja foi interpelada e iluminada pelo testemunho de inúmeros profetas e mártires. Profecia e martírio são legados da memória da Igreja chamada a testemunhar, com coragem e liberdade, a Palavra que defende a vida e julga os poderes deste mundo” (Doc. da CNBB, 87, n. 24). Recordamos aqui D. Oscar Romero, Pe. Ezequiel, Pe. Josimo, o índio Marçal Guarani, Chico Mendes, Irmã Doroty Stang e tantos outros, além dos que estão marcados para morrer.

Nessa trajetória, o Concílio Vaticano II (1962-1965) reafirmou e redirecionou o caminho. Surgiu aí a emergência dos oprimidos. A busca da Igreja foi se dando na descoberta dos pobres em geral, onde está o Deus que com eles também clama pedindo socorro (no hebraico: tzaakah: grito desesperado: Cf. Ex 3,7.9). Atualmente, se abre para outras dimensões de pobres e miseráveis, com seus “novos rostos”, a saber: “os migrantes; as vítimas da violência; os refugiados; os seqüestrados; as pessoas portadoras do vírus HIV; os tóxico-dependentes; os idosos; os meninos e meninas vítimas da prostituição, da violência, de tráfico de pessoas, de grande número de abortos, do trabalho infantil; as mulheres maltratadas, exploradas sexualmente; as pessoas com necessidades especiais; os desempregados; os analfabetos digitais; os encarcerados; os moradores de rua; os indígenas e afro-descendentes; os camponeses sem terra” (Doc. da CNBB, 87, n. 83; Cf. DA, n. 402). E esses “novos pobres, hoje não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e descartáveis’” (Doc. da CNBB, 87, n. 25).

A partir da visão dessa realidade primeira (grau zero), nasce a reflexão sobre essa realidade. Depois, vem a atitude pastoral. É desse tripé que nasce o empenho pela libertação dos cativos (Cf. Is 61,1-2). Isso, sim, é fazer teologia, é praticar a espiritualidade! A ação misericordiosa de Jesus (coração aberto aos míseros) se dá nesse processo. Portanto, a teologia e a espiritualidade devem fazer este mesmo caminho metodológico de Jesus. Caso contrário, são falsas.

A marca distintiva da Boa Nova de Jesus está na sua opção incondicional pelos pobres. Em todos os tempos eles foram o grande desafio, como se vê na Escritura: “Nunca deixará de haver pobres na terra” (Dt 15,11a). Isto não é uma maldição, porque esta triste constatação é seguida de um mandamento: “é por isso que eu te ordeno: abre a tua mão em favor do teu irmão, do teu pobre e do teu indigente em tua terra” (Dt 15,11b). Portanto, somos interpelados a “não endurecer o nosso coração ao nosso irmão pobre, mesmo que seja um só” (Dt 15,7).

A teologia e a espiritualidade assumiram o mérito de colocar os pobres em evidência. Como os pobres sempre foram vistos como os que não têm e os ricos como os que têm, surgiram os grandes espaços para assisti-los; verdadeiros samaritanos. Mas atualmente se percebe que os pobres não são somente os que não têm, pois têm sim inteligência, experiência, vontade, entusiasmo, força de trabalho, espiritualidade, sonhos, propostas. Criaram-se então espaços de capacitação dos pobres. Porém, não se considerou o conflito e a causa que levou o indivíduo a tornar-se pobre, a empobrecê-lo.

Na medida que os pobres tomam consciência dos mecanismos que o empobrecem e se mobilizam, tornam-se agentes, projetando alternativas de transformação social. São os pobres libertadores, bem aventurados do Reino. De fato, na história “nunca se conheceu movimento em que dominadores libertam dominados. São os dominados que se libertam” (Enrique Dussel, filósofo, historiador e teólogo argentino). E nessa luta, como cidadãos e filhos de Deus, os pobres foram e são verdadeiros mestres e agentes de conversão de tantos corações endurecidos, tanto na sociedade quanto na Igreja.

A opção incondicional pelos pobres é bíblica e teologicamente fundamentada, porque o Deus de Jesus é o Deus vivo, amor, ternura, humilde, que quer vida, a vida que o pobre clama, como Jesus na cruz. Jesus assumiu até o fim a missão indiscutível de libertar os oprimidos (famintos, doentes, dominados) dos inimigos da vida (Cf. Jo 10,7-16). Por isso, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica”, pois “essa opção nasce da fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão” (DA, n. 392). Assim sendo, a comunidade cristã não pode se envergonhar de Jesus Libertador e Salvador dos sofredores, pois foi para isso que o “Espírito do Senhor” o “ungiu” (Cf. Lc 4,18-22). Portanto, a universalidade do Evangelho, passa pela parcialidade dos pobres. Santo Inácio de Antioquia (67-107 d.C.) escreveu que "onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica" (Carta aos Esmirnenses, 8,2). Mas Jesus Cristo está no meio dos pobres (Cf. Mt 25,31-45). Por que nem sempre nós estamos? Porque a orientação do Magistério eclesial é que a Igreja seja “realmente a ‘casa dos pobres’” (Doc. da CNBB, 87, n. 9; Cf. DA, n. 8).
A opção incondicional pelos pobres ajuda a redefinir a teologia e a espiritualidade. Realmente, “se nesses quinhentos anos de colonização latino-americana os pobres mantiveram uma história de resistência sem conhecer a Bíblia, imaginem quando a conhecerem!” (Gustavo Gutierrez, teólogo peruano). Tal opção ajuda a redefinir também a nossa vida na dimensão do fim último, do escatológico, pois é critério incontestável de “perdição eterna” ou de “vida eterna” (Cf. Mt 25,46). Esta opção nos ajuda ainda a desideologizar a teologia e a espiritualidade, porque a fé não é ignorância ou atraso, mas tem sua razão de ser (Cf. 1Pd 3,15; Rm 10,13-15a; João Paulo II. Fides et Ratio, n. 106-107; Bento XVI. Spe Salvi, n. 18).

Em meio a tamanha pobreza, somos chamados a sair da animosidade para a humanidade, pois é próprio da natureza humana a solidariedade. (Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 82). O Segundo Testamentos conservou um retrato ideal das comunidades cristãs do primeiro século, onde “não havia entre eles necessitado algum. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade” (At 4,34a.35b; Cf. At 2,44-45; 5,12-16). Se o mundo é egoísta, é porque se desumanizou.

Diante disso, Bento XVI “nos recorda que a Igreja está convocada a ser advogada da justiça e defensora dos pobres” (DA, n. 395). Naturalmente, a Igreja é vocacionada a ser a comunidade dos bem-aventurados, dos “puros de coração” (Mt 5,3), tornando-se verdadeiro sinal, isto é, “sacramento universal da salvação” (Lumen Gentium, n. 48). Daí a necessidade do compromisso não só com a libertação de todas as pessoas, mas da pessoa toda, inteira, em vista “de uma sociedade justa e solidária, ‘para que todos tenham vida e a tenham em abundância’” (Objetivo geral da ação evangelizadora da Igreja no Brasil – 2008-2010).

Para concluir, arrisco dizer que quem não assume esse processo, não é lícito rezar o Pai nosso. Pois só quem une o Pai ao pão, pode dizer Amém. É preciso, portanto, ajudar e envolver todos os setores da Igreja, pastorais e movimentos, na sua carência do Evangelho e da prática da justiça. Enquanto isso, continuemos pedindo: “Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao vosso!”. Porque “deste divino Coração correm sem parar três rios: o primeiro é de misericórdia pelos pecadores; o segundo é de caridade, para auxílio de todos os sofredores; e o terceiro é de amor e luz para seus amigos, a fim de que se dediquem totalmente à expansão da sua glória” (Das cartas de Sta. Margarida Maria Alacoque).

 
©2007 '' Por Elke di Barros