sexta-feira, 30 de maio de 2008

"FELIZES OS PUROS DE CORAÇÃO" (Mt 5,8)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
Para nós, cristãos católicos, o mês de junho é dedicado ao “Sagrado Coração de Jesus”. Esta devoção nasceu com S. João Eudes, em 1672, e foi largamente difundida por Sta. Margarida Maria Alacoque, em 1675. No ano de 1856, o papa Pio IX prescreveu-a para a Igreja inteira, fixando-a na terceira sexta-feira, após a festa de Pentecostes.

A partir desta devoção tão popular, perguntamos: como viver hoje, na prática, os mesmos sentimentos e gestos de Jesus, brotados do seu coração? Como realizar o essencial do Evangelho e do cristianismo? S. João Eudes disse: “deves ter com Jesus um só espírito, uma só alma, uma vida, uma vontade, uma intenção, um só coração. E ele será teu espírito, coração, amor, vida, e tudo o que é teu” (Tratado sobre o admirável Coração de Jesus). Como concretizar isso?

Em nível social, político e econômico, nosso planeta está vivendo as conseqüências drásticas da globalização. Se, por um lado este fenômeno é tomado “como ‘uma conquista da família humana’, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças”, por outro, “lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. (...) Esse caráter peculiar faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade,a justiça, o amor, e muito especialmente a dignidade e o direito de todos” (DA, n. 60-61; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 24).

Face a isso, uma recente e triste estatística mostra que “a metade pobre da população brasileira ganha em soma quase o mesmo valor (12,5% da renda nacional) que os 1% mais ricos (13,3% da renda nacional)” (SICSÚ, João; PAULA, Luis Fernando; e RENAUT, Michel. Por que um novo desenvolvimentismo? Jornal dos Economistas, São Paulo, janeiro de 2005, n. 186). É bom lembrar que a metade da população brasileira atualmente é de cerca de 90 milhões.

E em âmbito eclesial, tanto a teologia como a espiritualidade também vivem grandes crises. Mas são crises que acrisolam, que purificam. Paradoxalmente, quanto mais nos afastamos da origem da teologia e da espiritualidade, mais sentimos a sua necessidade. Sabemos que o cristianismo sempre sobreviveu, desde a sua origem, aos grandes conflitos que geraram os mártires Pedro, Paulo, Estevão, etc., passando pela Idade Média, com Sto. Agostinho, Sto. Tomás de Aquino, S. Boaventura, S. João Crisóstomo, etc.. E como “em toda a sua história, nas últimas décadas, a Igreja foi interpelada e iluminada pelo testemunho de inúmeros profetas e mártires. Profecia e martírio são legados da memória da Igreja chamada a testemunhar, com coragem e liberdade, a Palavra que defende a vida e julga os poderes deste mundo” (Doc. da CNBB, 87, n. 24). Recordamos aqui D. Oscar Romero, Pe. Ezequiel, Pe. Josimo, o índio Marçal Guarani, Chico Mendes, Irmã Doroty Stang e tantos outros, além dos que estão marcados para morrer.

Nessa trajetória, o Concílio Vaticano II (1962-1965) reafirmou e redirecionou o caminho. Surgiu aí a emergência dos oprimidos. A busca da Igreja foi se dando na descoberta dos pobres em geral, onde está o Deus que com eles também clama pedindo socorro (no hebraico: tzaakah: grito desesperado: Cf. Ex 3,7.9). Atualmente, se abre para outras dimensões de pobres e miseráveis, com seus “novos rostos”, a saber: “os migrantes; as vítimas da violência; os refugiados; os seqüestrados; as pessoas portadoras do vírus HIV; os tóxico-dependentes; os idosos; os meninos e meninas vítimas da prostituição, da violência, de tráfico de pessoas, de grande número de abortos, do trabalho infantil; as mulheres maltratadas, exploradas sexualmente; as pessoas com necessidades especiais; os desempregados; os analfabetos digitais; os encarcerados; os moradores de rua; os indígenas e afro-descendentes; os camponeses sem terra” (Doc. da CNBB, 87, n. 83; Cf. DA, n. 402). E esses “novos pobres, hoje não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e descartáveis’” (Doc. da CNBB, 87, n. 25).

A partir da visão dessa realidade primeira (grau zero), nasce a reflexão sobre essa realidade. Depois, vem a atitude pastoral. É desse tripé que nasce o empenho pela libertação dos cativos (Cf. Is 61,1-2). Isso, sim, é fazer teologia, é praticar a espiritualidade! A ação misericordiosa de Jesus (coração aberto aos míseros) se dá nesse processo. Portanto, a teologia e a espiritualidade devem fazer este mesmo caminho metodológico de Jesus. Caso contrário, são falsas.

A marca distintiva da Boa Nova de Jesus está na sua opção incondicional pelos pobres. Em todos os tempos eles foram o grande desafio, como se vê na Escritura: “Nunca deixará de haver pobres na terra” (Dt 15,11a). Isto não é uma maldição, porque esta triste constatação é seguida de um mandamento: “é por isso que eu te ordeno: abre a tua mão em favor do teu irmão, do teu pobre e do teu indigente em tua terra” (Dt 15,11b). Portanto, somos interpelados a “não endurecer o nosso coração ao nosso irmão pobre, mesmo que seja um só” (Dt 15,7).

A teologia e a espiritualidade assumiram o mérito de colocar os pobres em evidência. Como os pobres sempre foram vistos como os que não têm e os ricos como os que têm, surgiram os grandes espaços para assisti-los; verdadeiros samaritanos. Mas atualmente se percebe que os pobres não são somente os que não têm, pois têm sim inteligência, experiência, vontade, entusiasmo, força de trabalho, espiritualidade, sonhos, propostas. Criaram-se então espaços de capacitação dos pobres. Porém, não se considerou o conflito e a causa que levou o indivíduo a tornar-se pobre, a empobrecê-lo.

Na medida que os pobres tomam consciência dos mecanismos que o empobrecem e se mobilizam, tornam-se agentes, projetando alternativas de transformação social. São os pobres libertadores, bem aventurados do Reino. De fato, na história “nunca se conheceu movimento em que dominadores libertam dominados. São os dominados que se libertam” (Enrique Dussel, filósofo, historiador e teólogo argentino). E nessa luta, como cidadãos e filhos de Deus, os pobres foram e são verdadeiros mestres e agentes de conversão de tantos corações endurecidos, tanto na sociedade quanto na Igreja.

A opção incondicional pelos pobres é bíblica e teologicamente fundamentada, porque o Deus de Jesus é o Deus vivo, amor, ternura, humilde, que quer vida, a vida que o pobre clama, como Jesus na cruz. Jesus assumiu até o fim a missão indiscutível de libertar os oprimidos (famintos, doentes, dominados) dos inimigos da vida (Cf. Jo 10,7-16). Por isso, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica”, pois “essa opção nasce da fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão” (DA, n. 392). Assim sendo, a comunidade cristã não pode se envergonhar de Jesus Libertador e Salvador dos sofredores, pois foi para isso que o “Espírito do Senhor” o “ungiu” (Cf. Lc 4,18-22). Portanto, a universalidade do Evangelho, passa pela parcialidade dos pobres. Santo Inácio de Antioquia (67-107 d.C.) escreveu que "onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica" (Carta aos Esmirnenses, 8,2). Mas Jesus Cristo está no meio dos pobres (Cf. Mt 25,31-45). Por que nem sempre nós estamos? Porque a orientação do Magistério eclesial é que a Igreja seja “realmente a ‘casa dos pobres’” (Doc. da CNBB, 87, n. 9; Cf. DA, n. 8).
A opção incondicional pelos pobres ajuda a redefinir a teologia e a espiritualidade. Realmente, “se nesses quinhentos anos de colonização latino-americana os pobres mantiveram uma história de resistência sem conhecer a Bíblia, imaginem quando a conhecerem!” (Gustavo Gutierrez, teólogo peruano). Tal opção ajuda a redefinir também a nossa vida na dimensão do fim último, do escatológico, pois é critério incontestável de “perdição eterna” ou de “vida eterna” (Cf. Mt 25,46). Esta opção nos ajuda ainda a desideologizar a teologia e a espiritualidade, porque a fé não é ignorância ou atraso, mas tem sua razão de ser (Cf. 1Pd 3,15; Rm 10,13-15a; João Paulo II. Fides et Ratio, n. 106-107; Bento XVI. Spe Salvi, n. 18).

Em meio a tamanha pobreza, somos chamados a sair da animosidade para a humanidade, pois é próprio da natureza humana a solidariedade. (Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 82). O Segundo Testamentos conservou um retrato ideal das comunidades cristãs do primeiro século, onde “não havia entre eles necessitado algum. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade” (At 4,34a.35b; Cf. At 2,44-45; 5,12-16). Se o mundo é egoísta, é porque se desumanizou.

Diante disso, Bento XVI “nos recorda que a Igreja está convocada a ser advogada da justiça e defensora dos pobres” (DA, n. 395). Naturalmente, a Igreja é vocacionada a ser a comunidade dos bem-aventurados, dos “puros de coração” (Mt 5,3), tornando-se verdadeiro sinal, isto é, “sacramento universal da salvação” (Lumen Gentium, n. 48). Daí a necessidade do compromisso não só com a libertação de todas as pessoas, mas da pessoa toda, inteira, em vista “de uma sociedade justa e solidária, ‘para que todos tenham vida e a tenham em abundância’” (Objetivo geral da ação evangelizadora da Igreja no Brasil – 2008-2010).

Para concluir, arrisco dizer que quem não assume esse processo, não é lícito rezar o Pai nosso. Pois só quem une o Pai ao pão, pode dizer Amém. É preciso, portanto, ajudar e envolver todos os setores da Igreja, pastorais e movimentos, na sua carência do Evangelho e da prática da justiça. Enquanto isso, continuemos pedindo: “Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao vosso!”. Porque “deste divino Coração correm sem parar três rios: o primeiro é de misericórdia pelos pecadores; o segundo é de caridade, para auxílio de todos os sofredores; e o terceiro é de amor e luz para seus amigos, a fim de que se dediquem totalmente à expansão da sua glória” (Das cartas de Sta. Margarida Maria Alacoque).

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A V CONFERÊNCIA DO CELAM

Pe Paulo Nunes de Araujo
Estimados amigos e amigas leitores dos meus artigos aqui neste “blog”. Em meados de outubro passado, eu tive a feliz honra de participar de um grande simpósio de Teologia, na PUC-PR, para mais de quatrocentas pessoas, entre teólogos e teólogas, estudantes de Teologia, religiosos e religioss e agentes de pastoral leigos e leigas.

Este evento, assessorado pelos teólogos Prof. Dr. Pe. Mário de França Miranda, do Rio de Janeiro, e Prof. Dr. Pe. Agenor Brighenti, de Santa Catarina, teve como tema a “A 5ª Conferência do CELAM”, realizada em Aparecida, SP, de 13-31/5/2007.

Por se tratar de um assunto altamente relevante, que certamente irá dinamizar a nossa Igreja latino-americana e caribenha nesses próximos dez anos, fiz questão de partilhar com vocês propondo uma visão panorâmica do Documento de Aparecida (DA) a partir de cinco pontos centrais, a meu ver:

a) Ponto de partida da missão da Igreja: a realidade social que nos interpela e nos desafia. Pois se trata de uma realidade contraditória com a vontade de Deus Pai (DA, n. 33);

b) Ponto de chegada da missão: a vida em plenitude para todos (DA, n. 361). E a promoção humana deve ser integral, isto é, promover todos os homens e o homem todo (DA, n. 339);

c) Exigências para se caminhar de um ponto ao outro: a Igreja deve estar em estado permanente de missão (DA, n. 551); ela deve ser um poderoso centro de irradiação da vida em Cristo (DA, n. 362); ela necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença (DA, n. 362); enfim, a Igreja precisa assumir nova configuração institucional, isto é, novas estruturas (DA, n. 365);

d) Implicações: uma verdadeira conversão pessoal e pastoral, aliada à conversão das estruturas (DA, n. 366); urgente renovação eclesial e paroquial (DA, n. 372); assumir os novos rostos daqueles que sofrem (DA, n. 65); uma nova pastoral urbana (DA, n. 517); renovação das paróquias, a fim de que se estabeleça uma pastoral pensada, elaborada (DA, n. 172);

e) Como fazer esse caminho: propiciar uma experiência pessoal e profunda de fé, uma conversão real (DA, n. 129-153); vivência comunitária, para que todos se sintam incluídos e úteis (DA, n. 304-310); aprofundar nos conteúdos da fé (DA, n. 341-346); compromisso comunitário na perspectiva das CEBs (DA, n. 178-180). A falta desses elementos tem sido os motivos básicos pelos quais muitos deixaram a Igreja para se unir a outros grupos religiosos.

Além dessa visão ampla, eu gostaria de elencar dez frases do Documento que para mim causam forte impacto positivo: a) A vocação ao discipulado missionário é con-vocação à comunhão em sua Igreja (DA, n. 156); b) A Igreja cresce, não por proselitismo, mas por atração: como Cristo atrai tudo para si com a força do seu amor (DA, n. 159); c) A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão (DA, n. 163); d) Os fiéis leigos são homens e mulheres da Igreja no coração do mundo, e homens e mulheres do mundo no coração da Igreja (DA, n. 209); e) A pessoa sincera que sai de nossa Igreja aspiram o que não têm encontrado, como: experiência religiosa profunda e intensa, vivência comunitária onde se sintam acolhidos e valorizados, formação bíblico-doutrinal, compromisso missionário de todos (DA, n. 225-226); f) Onde se estabelece o diálogo (ecumênico), diminui o proselitismo (DA, n. 233); g) A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé Cristológica (DA, n. 392); h) A Igreja está convocada a ser advogada da justiça e defensora dos pobres (DA, n. 395); i) É necessário superar a mentalidade machista que ignora a novidade do cristianismo (DA, n. 453); j) A América Latina e o Caribe não devem ser só o Continente da esperança, mas também o Continente do amor, da vida e da paz (DA, n. 537).

Com isso, vemos que a palavra de ordem da Igreja hoje, mais do que nunca, é mudar. Porque não basta ter uma mudança de mentalidade; é preciso uma mentalidade de mudança. E tem que ser rápido. Caso contrário vamos ficar embolorados (João XXIII) ou estagnados (Bento XVI).

Abracemos juntos esta causa, cientes de que esta causa é de Jesus e, portanto, deve ser também da Igreja. Assim, “guiados por Maria, fixemos os olhos em Jesus Cristo, autor e consumador da fé, e digamos a ele: fortalece a todos em sua fé para que sejam teus discípulos e missionários” (DA, 554).

sábado, 24 de maio de 2008

"QUEM DIFUNDE CALÚNIA É SEM JUÍZO" (Pv 10,18)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
“Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam” (Lc 6,27-28). Com estes versículos que trazem o ensino de Jesus sobre a necessidade do amor e da gratuidade nas relações interpessoais, inspirei-me a escrever este artigo para, quem sabe, propiciar uma reflexão mais profunda.

No campo das relações humanas, a comunidade cristã só será justa e fraterna se as relações forem alterativas e gratuitas, à semelhança do amor misericordioso de Deus. Na tentativa de colaborar nesse processo cotidiano de reconciliação, de perdão e de verdadeira conversão, proponho como ponto de reflexão, um assunto bem concreto e lamentavelmente muito freqüente em nossas comunidades: o que fazer diante de um boato ou fofoca que ofende a honra de alguém, gerando mágoa e humilhação?

Vejo isso com muita preocupação, porque realmente vivemos atualmente numa sociedade marcada pelo que eu chamo de “mentalidade da fofoca” , que na verdade, é uma "mentalidade delinquente" ou ainda, vivemos numa “geração vampiro”, pois muitos vivem como que “sugando o sangue” dos outros. Basta vermos as inúmeras revistas, folhetos, “sites” na internet, programas de rádio e televisão que ganham muito dinheiro fazendo fofoca, falando mal da vida dos outros. E o pior é que todos nós estamos sujeitos a cairmos na mira dos fofoqueiros de plantão. Creio que só uma “boa educação” ajudará a reverter esta situação.

Em face da questão acima, sirvo-me de um exemplo veraz, algo que ocorreu com um amigo meu. Certo dia ele me procurou para conversar e disse-me que estava muito aborrecido porque o seu tio falou muito mal dele para a família e para os vizinhos. E não era verdade o que o tio havia dito. Por isso ele estava muito magoado, com o coração ferido. Ao final, me perguntou: Como cristão que sou o que eu devo fazer?

De fato, o que fazer quando alguém propaga uma mentira sobre o outro? No caso desse homem, o mentiroso era o tio. Foi fácil notar que ao falar mal do sobrinho, ele queria mesmo era chamar a atenção sobre si mesmo, por inveja. Após alguns minutos de conversa, o homem saiu aliviado, disposto a não deixar que os comentários maldosos do tio sobre ele lhe tirassem a serenidade interior. Afinal, a sua consciência estava tranqüila.

Porém, nem sempre é fácil perceber o motivo de um boato e, o pior, contornar suas terríveis conseqüências. A sábia historieta do confessor que mandou o seu penitente que havia falado mal de alguém esvaziar um saco de penas de cima de um prédio e depois sir pela cidade recolhendo-as todas de volta, esclarece bem o infortúnio da fofoca. É difícil repará-lo.

Dentro do âmbito religioso e cristão, o próprio Jesus previu que isso aconteceria na vida das comunidades. E nos ensinou três tentativas (Cf. Mt 18,15-20; Lc 17,3-4). Primeira: “Se o teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós. Se ele te ouvir, ganhaste o teu irmão” (Mt 18,15). Vemos aí que o diálogo derruba barreiras e preconceitos, nos ajuda a aceitar o outro como nosso próximo e nos leva a percebe os juízos e opções certos ou errados que fazemos no nosso dia a dia. Quanto mal poderia ser evitado, quanto bem poderia ser feito se ao invés de sairmos propalando os erros de alguém, nós o chamássemos para uma conversa amiga e fraterna!

Segunda: “Se ele não te ouvir, porém, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda questão seja decidida” (Mt 18,16). Jesus nos ensina que há sempre uma nova chance, pois a justiça do Reino não se cansa. Feito isso, com o desejo de ajudar o irmão a corrigir-se, que bom! Não tem porque sair por aí dizendo que aquele irmão não tem jeito, não presta. E o pior, deixar dúvidas na cabeça dos outros sobre tal pessoa, comprometendo a sua honra.

Terceira: “Caso não lhes der ouvido, dizei-o à Igreja” (Mt 18,17). Não se trata aqui de um cerco contra o irmão que errou. É que a misericórdia do Reino tem por princípio fazer tudo para que o irmão não se perca. E a grande instância é a comunidade-igreja. Realmente, a comunidade de irmãos que assim procede, torna-se incontestavelmente “sacramento de salvação” (Lumen Gentium, n. 1; Doc. de Aparecida, n. 155), pois é a própria Trindade Divina quem nela age. Fora desses princípios, corremos o risco de pecarmos contra o 8° mandamento do Sinai: “Não apresentarás um testemunho mentiroso contra o teu próximo” (Ex 20,16).

Mas como todo cristão é também um cidadão, por essa razão, no campo civil, tem seus direitos garantidos pela Lei. Com a colaboração de alguns advogados amigos meus, aprendi que o Código Penal Brasileiro, no Capítulo V, trata “Dos crimes contra a honra”, a saber: a calúnia, a difamação e a injúria. Segundo o Código Penal, caluniar alguém é imputar-lhe falsamente fatos definidos como crime (Art. 138); difamar alguém é imputar-lhe fato ofensivo à sua reputação (Art. 139); e injuriar alguém é ofender-lhe a dignidade ou o decoro (Art. 140). E para cada um desses delitos, há uma pena correspondente, incluindo reclusão e/ou multa.

Nesse aspecto, ciente do Direito Romano e como bom “jurista”, Jesus ensina aos “bem aventurados” o verdadeiro espírito do novo Reino, expondo no “sermão da montanha”, não um código de leis positivas, mas “propostas de felicidade”. Se no passado foi dito: “Não matarás” (Ex 20,13), pois “aquele que matar terá de responder no tribunal” (Mt 5,21), agora diz Jesus que qualquer ofensa pessoal: “ficar com raiva do seu irmão”, “chamar o irmão de cretino, de idiota” (Mt 5,22), leva o ofensor a tornar-se réu igualmente. Porque também se “mata” com a língua, como sugere o apóstolo: “a língua é um mal irrequieto e está cheia de veneno mortífero” (Tg 3,8; Cf. Jr 9,4; 2Tm 3,1-5a; Pv 16,28). E isso não é digno de um “felizardo do Reino”.

Segundo aqueles advogados, para que os referidos crimes tomem forma, é preciso seguir este trâmite normal: que sejam notoriamente comprovados, mediante duas ou mais testemunhas; e que a queixa seja registrada na polícia através de um Boletim de Ocorrência. Pois zelar por sua dignidade e integridade é um direito do cidadão. Porém, sempre se recomenda a tolerância, o bom senso, o diálogo, a fim de que a questão seja sanada de outro modo e com tranqüilidade.

Mas seja no âmbito religioso ou no âmbito civil, vemos que é urgente fazermos todo o possível para cortar pela raiz o terrível mal da fofoca (ou melhor, da calúnia, da difamação e da injúria). Precisamos criar ambientes seguros e saudáveis, pois sabemos que “as más companhias corrompem os bons costumes” (1Cor 15,33) e que, infelizmente, existem aqueles que, mesmo estando ao lado, são ímpios e maus, porque “com a injustiça sufocam a verdade” (Rm 1,18). Por isso, diante da intrépida pregação de Pedro, seus ouvintes, aflitos, perguntaram sobre o que deveriam fazer dali em diante, ao que ele respondeu com firmeza: “Arrependei-vos...” e “Livrai-vos dessa gente corrompida” (At 2,40b).

Para concluir, proponho que em nossas relações usemos sempre o bom senso, a inteligência, a prudência e a misericórdia. E recordo aqui três critérios ensinados pelos “Santos Padres da Igreja”, da época Patrística (Séc. IV), os quais deveriam orientar nossos comentários sobre o próximo. São eles: a verdade, a bondade e a necessidade. Se você tiver algo a dizer sobre alguém, verifique antes se é verdade. Porque suposições, “achismos”, “ouvi dizer” não são critérios inteligentes. Depois, veja se é bom, se é construtivo, se vai produzir algo de benigno para tal pessoa. Por fim, verifique se é necessário, se é urgente, se é essencial e indispensável, se vale à pena. Com isso, não sendo verdadeiro, nem bom e nem necessário... boca fechada!

O renomado professor Luis Marins numa de suas palestras ensina que “se não for para falar bem, não fale mal dos outros”, como uma das grandes exigências para se manter o entusiasmo, a alegria de viver. Então, “não faleis mal uns dos outros, irmãos” (Tg 4,11a). Mas enquanto esse sonho vai se realizando, fiquemos com a orientação do apóstolo: “tal é a vontade de Deus, que, fazendo o bem, tapeis a boca dos insensatos e ignorantes” (1Pd 2,15).



Pe. Paulo Nunes de Araujo

quarta-feira, 21 de maio de 2008

"A INVEJA LEVA O TOLO À MORTE" (JÓ 5,2)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
Com esta fábula abaixo, intitulada “A cobra e o vaga-lume”, cujo autor não se sabe quem é, mas certamente conhecida por muitos, pretendo levar a refletir sobre a inveja, o mais terrível dos “sete vícios capitais” e uma das doze piores “impurezas” elencadas por Jesus, e que geralmente habitam o nosso coração (Cf. Mc 7,21-23). Proponho a sua leitura e reflexão porque a inveja é algo funesto que inevitavelmente pode acontecer conosco, levando a sério prejuízo as nossas relações sociais e comunitárias. Eis a fábula, a qual encontra-se disponível em: <clique aqui>. Acessado em: 15 maio 2008.
“Era uma vez uma cobra que começou a perseguir um vaga-lume. Ele fugia com medo da feroz predadora, mas a cobra não desistia. Um dia, já sem forças, o vaga-lume parou e disse à cobra:
- Posso te fazer três perguntas?
- Podes. Não costumo abrir esse precedente, mas já que vou te comer, podes perguntar.
- Pertenço à tua cadeia alimentar?
- Não
- Fiz-te alguma coisa?
- Não
- Então porque é que queres me comer?
- Porque mão suporto ver-te brilhar!!!
Uma outra versão dessa fábula, acrescenta que "quando a cobra foi atacar o vaga-lume, ele apagou a sua luz por alguns instantes e conseguiu se esconder da cobra má e invejosa. Assim, o vaga-lume conseguiu sobreviver, mas teve que apagar o seu brilho por alguns instantes". Esta foi uma inteligente estratéia para defender a sua vida. Às vezes precisamos fazer o mesmo, não é?

Como aplicação prática à nossa vida, esta alegoria claramente nos mostra que a inveja é um dos mais apavorantes malefícios da humanidade. Porque inveja é a gana de possuir algo que é de outra pessoa, chegando a entrar em depressão por não conseguir. De fato, segundo Joaquim Lopes Alho Filho, psiquiatra e doutor em saúde mental, a inveja é “o único dos sete pecados que pressupõe agressão. A inveja é a raiz de toda a violência. O indivíduo pensa: ‘ele é e tem o que não eu não sou e não tenho’. Isso é uma fonte de frustração e o sujeito quer destruir o outro por não ter e não ser” (FREITAS, Estanislau de. Os sete pecados, Folha de São Paulo, São Paulo, 21 de abril de 2005. Folhaequilíbrio, p. 7).
Muitos dizem asseveradamente que a inveja é a arma dos incompetentes. Normalmente, uma pessoa que não tem a capacidade de lutar por suas coisas acaba fixada em desejar o que é alheio. Portanto quando alguém se perceber tomado por este sentimento, deve procurar retirá-lo de sua mente o mais rápido possível e até procurar ajuda técnica, profissional, nos casos mais urgentes. Cada pessoa tem capacidade para conseguir os seus sonhos, seus intentos. Então, não há nessecidade da inveja!
Voltando à fábula acima, realmente existem pessoas más (as “cobras” , os "animais peçonhentos") em todo e qualquer ambiente humano e, infelizmente, também na comunidade cristã, tentando cotidianamente, com muita sutileza e requinte, ofuscar ou apagar a nitidez e o brilho das pessoas boas, generosas (os “vaga-lumes”). Até porque não existe inveja boa.
No entanto, por mais que existam “cobras” perseguindo “vaga-lumes”, Deus nunca deixará que apaguem o esplendor das pessoas boas e fiéis a ele e aos seus retos princípios, pois elas trazem em si o bem, para si mesmas e para os outros. Afinal, é o proprio Jesus quem diz: "que a luz de vocês brilhe diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que vocês fazem" (Mt 5,16).

Em face disso, no campo psicológico e do desenvolvimento da personalidade, muitos estudiosos da área oferecem algumas sugestões para se livrar da tentação de cair no pecado da inveja, como: deixar de olhar para os outros e se valorizar; admirar, não invejar; procurar se conhecer.

E no âmbito bíblico, eu proponho este profundo ensinamento do profeta: “Se você tirar do seu meio a dominação, o gesto que ameaça e a linguagem difamatória; se você der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido, a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio dia” (Is 58,9b-10).

Mas é Jesus quem dá a definitiva orientação: “Quem pratica o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas ações não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas como Deus quer” (Jo 3,20-21). E, por fim, ele nos lança um convite: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12).

Então, fiquemos atentos e de olhos bem abertos! Procuremos saber quem é quem ao nosso redor e selecionemos bem as pessoas em quem confiar! E não tenhamos o medo e o contrangimento de até apontar o nome de tais pessoas. Sem dúvida, este é um bom serviço que se presta à comunidade. Porque é mais do que comprovado, inclusive atestado pelo próprio Jesus, que “os filhos deste mundo são mais espertos com sua gente do que os filhos da luz (Lc 16,8). Por isso, sem fazer o jogo dos perversos, incessantemente “rezemos por aqueles que nos perseguem!” (Mt 5,44).

Para concluir, trago aqui o trecho de duas cartas que recentemente recebi de pessoas boas que, se dúvida, ajudam-me a manter o meu fulgor. Uma, dos grandes amigos de Mairiporã, SP, onde trabalhei: “Pe. Paulo, seja onde for, perto ou longe, você estará sempre no nosso coração. Sabemos que muitos tentaram te prejudicar, mas ninguém é capaz de apagar o seu brilho; onde você estiver você sempre irá brilhar, pois você tem sua luz própria e isso ninguém apagará, pois você é grande e vitorioso. Deus te abençoe e te proteja sempre”. E outra, também de fantásticos e verdadeiros amigos e paroquianos, de São Lourenço do Sul, RS: “Pe. Paulo, a luz que vem de Cristo invada o seu coração. Confie nele! Veja cada dificuldade como mais uma chance de crescer. A paz, a justiça e a fraternidade são valores, os quais primamos em compartilhar com você, e a leve em sua nova caminhada. A amizade, cuja fonte é Deus, é inesgotável, não importando a distância, quando sincera e vem do coração”.
A todas essas pessoas maravilhosas que trilharam o meu caminho, só me resta dizer, com muito carinho, um “muito obrigado” , que Deus os abençoe e a Virgem Maria os proteja sempre.

 
©2007 '' Por Elke di Barros