quinta-feira, 3 de julho de 2008

A MISSÃO UTÓPICA DE JESUS: POR QUE ELE VEIO?

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas (necessidades humanas básicas) vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). Com essas palavras Jesus ensina aos “bem-aventurados” no “sermão do monte”, a se abrirem confiantes à Providência de Deus, e nelas eu me inspirei a escrever este artigo.

A “boa nova” que Jesus proclamou ao longo de toda a sua vida neste mundo, os evangelhos sinóticos a resumem no anúncio da proximidade do “Reinado” ou “Reino de Deus” (Cf. Mc 1,14-15; Mt 4,17.23; Lc 4,43). Essas duas expressões, embora com tons cambiantes, designam uma realidade nova, isto é, a sociedade humana alternativa capaz de gerar vida e felicidade. A primeira expressão, “o Reinado de Deus”, parte do ponto de vista da ação de Deus sobre o ser humano, indivíduo e comunidade; a segunda, “o Reino de Deus”, exprime os indivíduos e as comunidades que já vivem e experimentam a ação divina na história, pois, como vemos, “o Reino de Deus já chegou a vós” (Mt 12,28).

Porém, como resquício do passado, ainda hoje o “Reinado de Deus” é identificado com a felicidade eterna depois da morte, com a realidade escatológica definitiva. Mas a verdadeira escatologia (do grego eskhatón: fim último, derradeiro) aponta não só para o fim da nossa existência neste mundo, mas também para o fim de tudo o que prejudica a vida aqui. Portanto, o “Reinado de Deus” acontece na história e o “Reino de Deus” deve ser uma realidade dentro dela. Trata-se, então, de algo “que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu” (DA, n. 19). Nesse processo, vamos viver constantemente a tensão entre o já e o não-ainda. A expressão “Reino de Deus” é judaica, usada sobretudo na época intertestamentária (preexistente aos evangelhos) e significava para o judaísmo uma realidade social, que praticamente deveria se cumprir na época messiânica. Nela, Israel formaria uma sociedade justa, viveria na fidelidade a Deus e dominaria seus inimigos.

No Segundo Testamento encontramos os dois aspectos dessa nova realidade: o aspecto individual, que exige a mudança pessoal, “o homem e mulher novos” (Cf. Jo 3,3-6), e o social, que implica a mudança das relações humanas, a “sociedade nova”, radicalmente nova (não renovada = reformada): “céu novo e nova terra” (Cf. Ap 21). De fato, não haverá nova sociedade se não existir “o homem e mulher novos”. A realização individual do Reino, a constituição do “homem e mulher novos”, ocorre quando a pessoa, pela assimilação da mensagem de Jesus, decide entregar-se aos outros, como se vê nesta parábola do Reino: “O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente na terra: ele dorme e acorda, de noite e de dia, mas a semente germina e cresce, sem que ele saiba como” (Mc 4,26-27).

Como resposta a esta entrega do homem e da mulher, Deus os fortalece comunicando-lhes sua própria “força” de vida, o Espírito: “Eis que eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto (Lc 24,49).

Dotados desta “força do Alto”, o homem e a mulher tornam-se responsáveis pela criação de uma sociedade verdadeiramente justa e humana. Podemos perceber com clareza a característica da justiça social do Reino, na parábola do grão de mostarda: o Reino de Deus “é como um grão de mostarda: quando é semeado na terra, é a menor de todas as sementes do mundo; mas depois de semeada, cresce e torna-se a maior que todas as hortaliças, e dá grandes ramos, de modo que, à sua sombra, as aves do céu podem fazer seus ninhos” (Mc 4,31-32; Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Nesta parábola, Jesus desmonta o ideal de grandeza das profecias sobre o Reino (Cf. Ez 17,22-24) para afirmar a existência do Reino de Deus como uma realidade inicialmente modesta, mas visível e vigorosa, dentro da sociedade humana.

Ainda dentro dos aspectos individual e social do “Reno de Deus”, o evangelista Mateus apresenta três parábolas bastante ilustrativas: a do fermento: “O Reino dos Céus é comparável ao fermento que uma mulher põe em três medidas de farinha, de tal forma que a massa toda fica fermentada” (Mt 13,33; Cf. Lc 13,20-21); a do tesouro: “O Reino dos Céus é comparável a um tesouro que estava escondido num campo e que um homem descobriu: ele o esconde novamente, e, em sua alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo” (Mt 13,44); e a da pérola preciosa: “O Reino dos Céus é ainda comparável a um comerciante que procurava pérolas finas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, foi vender tudo o que tinha e comprou-a” (Mt 13,45-46). Concluímos daí que não se faz parte do Reino por simplesmente pertencer a uma raça ou a uma nação, como na velha concepção judaica, mas por decisão e opção pessoal do ser humano; e isso é aberto a todos, indistintamente.

Na verdade, “o discípulo, à medida que conhece e ama o seu Senhor, experimenta a necessidade de compartilhar com outros a sua alegria de ser enviado, de ir ao mundo para anunciar Jesus Cristo, morto e ressuscitado, e tornar realidade o amor e o serviço na pessoa dos mais necessitados, em uma palavra, a construir o Reino de Deus” (DA, n 278e). Ou seja, “a paixão pelo Reino de Deus nos leva a desejá-lo cada vez mais presente entre nós” (Doc. da CNBB, 87, n 213).

Porém, ainda hoje muitos consideram que a vida presente não tem importância para o cristão, como se ela estivesse meramente subordinada à consecução da vida futura. Isto provavelmente devido a uma má interpretação de um trecho do Quarto Evangelho, traduzido como “meu Reino não é deste mundo (Jo 18,36a). Por isso, a tradução correta dessa passagem precisa ser deduzida do contexto. Quando Pilatos pergunta a Jesus: “Tu és o rei dos judeus?” (Jo 18,33), Jesus responde-lhe dizendo: “A minha realeza não é deste mundo. Se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam combatido para que eu não fosse entregue às autoridades dos judeus. Mas a minha realeza, agora, não é daqui (Jo 18,36).

Na sua resposta, Jesus distingue claramente a qualidade da sua realeza. É uma realeza que não oprime, que não se apóia na prepotência e nem na violência, como as monarquias da época, escoradas na força das armas. Portanto, a frase discutida fica mais bem traduzida assim: “a minha realeza não pertence a esta ordem vigente, a este estado de coisas”. Jesus é rei, mas um rei que comunica a liberdade e a vida, chegando a dar a sua própria vida para que viva a humanidade. E esta ação se verifica na história. Esta é a verdadeira utopia (do grego uktopós: literalmente: não-lugar) de Jesus: a sua realeza começa a acontecer já, aqui na terra, de outro jeito, não se servindo das estruturas deste mundo mundanizado, perverso.

Quanto ao mais, é evidente que no seu ensinamento, Jesus apresenta o Reino como uma realidade que cresce, se desenvolve e muitas vezes encontra dificuldades e oposições, como se vê na parábola do joio e do trigo (Cf. Mt 13,24-30.36-43). Sabemos que a coexistência do “trigo” e do “joio” é inevitável na sociedade humana. Se Jesus diz que não podemos arrancar o “joio”, pois podemos danificar o “trigo”, vamos ao menos saber “podá-lo”, e confiar que Deus fará a triagem verdadeira e definitiva depois. E isto começa a ocorre necessariamente em nossa história. Por tal razão, não se pode “conceber um cristão que não colabora no anúncio e na realização do Reino de Deus na história humana” (Doc. da CNBB, 87, n 57; Ibidem, n 2).

É evidente que o “Reino de Deus” não se regionaliza, não se resume a este ou àquele aspecto, como ensina o próprio Jesus: “Não se poderá dizer: “Ei-lo aqui! Ei-lo ali, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21). Mas é possível apontarmos alguns “sinais evidentes da presença de Deus: a vivência pessoal e comunitária das bem-aventuranças, a evangelização dos povos, o conhecimento e o cumprimento da vontade do Pai, o martírio pela fé, o acesso de todos os bens da criação, o perdão mútuo, sincero e fraterno, aceitando a riqueza da pluralidade e a luta para não sucumbir à tentação e não ser escravo do mal” (DA, n 383). Também “a busca e o acolhimento de todos, em especial dos que experimentam alguma forma de exclusão, é sinal do Reino de Deus” (Doc. da CNBB, 87, n 115).

Por outro lado, não fica difícil perceber também alguns sinais do “anti-reino”, pois “as condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e dor, contradizem a esse projeto do Pai e desafiam os cristãos a maior compromisso a favor da cultura da vida. O Reino da Vida que Jesus veio trazer é incompatível com essas situações desumanas. Se pretendemos fechar os olhos diante dessas realidades, não somos defensores da vida do Reino e nos situamos no caminho da morte” (DA, n 358; Doc. da CNBB, 87, n 51).

Assim sendo, o “nosso serviço pastoral à vida plena (...) exige que anunciemos Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas” (DA, n 95), ou seja, exige que “demos testemunho de Cristo e dos valores do Reino no âmbito da vida social, econômica, política e cultural” (DA, n 212).

O “Reino de Deus” representa, portanto, a alternativa para a sociedade injusta, proclama a esperança de vida nova, afirma a possibilidade de mudança e formula a utopia. Por isso, a partir de Jesus, o “Reino de Deus” constitui a melhor notícia (boa nova) que se pode anunciar à humanidade e a oferta permanente de Deus aos homens e mulheres que espera deles uma resposta firme e decidida. Assim, a Realização do “Reino” é sempre possível.

Obviamente, o primeiro passo para a criação desta nova sociedade é a mudança de vida que Jesus pede em ligação com o anúncio do Reino: “Cumpriu-se o tempo, e o Reinado de Deus tornou-se próximo: convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1,15). Sem mudança profunda de atitude por parte do homem e da mulher, que os levem a romper com o passado de injustiça, não há possibilidade alguma de começar algo novo.

Por isso, Pedro interpela os seus ouvintes: Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo. E salvai-vos dessa geração corrompida (At 2,38.40b).

A exortação à “conversão”, portanto, mostra que para se tornar realidade, o “Reino de Deus” conta com a colaboração de todos. A conversão é passo preliminar, que exige descontentamento e indignação com a situação vigente ruim, tanto em nível individual quanto em nível social. Mas a opção do homem e da mulher pelo “Reino de Deus” não pára na ruptura com a injustiça; supõe ainda um desejo de mudança, um compromisso pessoal. Somente os que sentem esta inquietação e se comprometem, atenderão positiva e dignamente ao convite de Jesus: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34).

Para concluir, peçamos de Deus a graça de nos mantermos sempre na trajetória de Jesus, o nosso paradigma fundamental e inquestionável, a fim de construirmos, juntos, nesta terra, o desígnio de Deus, a vontade” do Pai, o Reino da Vida. E façamos isso, em clima de oração, conforme Jesus mesmo nos ensinou: “Pai, venha o teu Reino” (Mt 6, 10a; Lc 11,2).

 
©2007 '' Por Elke di Barros