domingo, 31 de maio de 2009

PENTECOSTES: NASCE E SE EXPANDE A IGREJA

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Introdução


O cristianismo originou-se na Palestina. Foi aí que Jesus nasceu, cresceu, desenvolveu a sua missão, passando pela morte, ressurreição e ascensão. Se para o evangelista Lucas Jerusalém foi o ponto de chegada do evangelho (Cf. Lc 2,21-47), torna-se agora o ponto de partida, “até os extremos da terra” (At 1,8), realizando a profecia: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, todos os confins da terra” (Is 45,22a). Neste escrito, a partir de uma leitura do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos, apresento cinco elementos essenciais que deram origem e fizeram expandir a comunidade cristã do primeiro século e continua até os nossos dias.


1. A doação do Espírito Santo (At 2,1-3)

Lucas mostra que a comunidade cristã nasceu “quando chegou o dia de Pentecostes” (At 2,1), isto é, no qüinquagésimo dia, após a Páscoa cristã. No mundo extra-bíblico, num primeiro momento, a festa da Páscoa era a celebração do nascimento dos “primogênitos das ovelhas e do gado” (Ex 34,19b), e na “festa de Pentecostes, a festa das Semanas” (Tb 2,1b; Lv 23,15; Cf. Dt 16,9; 2Cr 8,13), período de “cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado” (Lv 23,16), o povo celebrava “as primícias da colheita do trigo e a festa da Colheita, na passagem do ano” (Ex 34,22; 23,16; Cf. Lv 23,10; Nm 28,26).

Mas posteriormente, com o êxodo do Egito, estas duas grandes festas ganharam uma conotação religiosa. A Páscoa passou a ser uma comemoração obrigatória para “todos os homens” (Ex 34,23; Cf. 23,17), como memorial do dia em que “com mão forte, Javé tirou o seu povo do Egito, da casa da servidão” (Ex 34,14; Cf. Ex 7,4b; Ex 20,2). E Pentecostes, passou a ser celebrado como memorial da Aliança do Sinai, ocorrida “no terceiro mês depois da saída do país do Egito” (Ex 19,1).

Ao recordar o Pentecostes judaico, certamente a intenção de Lucas é mostrar o fenômeno do nascimento e da universalização do novo povo de Deus e da evangelização como obra do Espírito Santo. Por isso, na cena de Pentecostes, Lucas faz uma leitura atualizante de textos da Escritura, ou Primeiro Testamento, terminologia esta sugerida pela CNBB (Cf. Estudo 86, nn. 6.9), pois junto com o Segundo Testamento, ambos nutrem a fé e “manifestam a verdadeira pedagogia divina” (DV, n. 15).

Para uma maior clareza, observemos o seguinte paralelo: a Páscoa judaica é o memorial do dia em que “com mão forte, Javé tirou o seu povo do Egito, da casa da servidão” (Ex 34,14; Cf. Ex 7,4b; Ex 20,2), e a Páscoa cristã é o memorial da “ressurreição” de Jesus (Cf. Mc 16,1-8; Mt 28,1-10; Lc 24,1-12; Jo 20,1-10), que nos libertou da escravidão do pecado; o Pentecostes judaico é o memorial da “Aliança do Sinai”, baseada nos “mandamentos” (Cf. Ex 19—20,17), e o Pentecostes cristão é o memorial da doação do Espírito Santo, um dos fundamentos da Nova Aliança (Cf. At 2,1-4).

Nesta cena da “doação do Espírito Santo”, consideremos três aspectos importantes. Primeiro, “todos eles estavam reunidos no mesmo lugar” (At 2,1), isto é, na “sala superior (no grego: hiperôon anébesan), onde costumavam ficar” (At 1,13a; Cf. Lc 22,12; Mc 14,15) para as reuniões e refeições. Ali, “todos eles, unânimes, perseveravam na oração” (At 1,14), do mesmo modo como na ocasião da Aliança do Sinai, quando “os filhos de Israel... acamparam no deserto, diante do monte” (Ex 19,1-2) enquanto “Moisés subiu” (Ex 19,3).

Segundo, a manifestação do Espírito recorda a teofania do Sinai. A palavra teofania (do grego: Θεοφάνεια theophâneia), significa “manifestação de Deus”. Notemos, então, que para se referir a aparição de Deus no monte, o autor do livro do Êxodo recorre a alguns símbolos teofânicos: “trovões”, “relâmpagos”, “nuvem”, “fogo”, “fumaça”, “tremor do monte” (Cf. Ex 19,16-19). Da mesma forma, Lucas descreve a presença do Espírito Santo usando basicamente os mesmos símbolos teofânicos do Sinai: “de repente, veio do céu um ruído como o sopro de um vendaval impetuoso.... Apareceram então umas línguas como de fogo” (At 2,2-3a).

Em terceiro lugar, o “fogo” tem forma de “línguas”, certamente para salientar o fenômeno da comunicabilidade e da expansão da Igreja. Essa informação recorda a vocação de Isaías, quando um dos serafins do Templo, “com a brasa tocou-lhe os lábios” (Is 6,7a) tornando-o um dos maiores profetas de Deus.

Além destes aspectos relevantes, Lucas ainda mostra que a doação do Espírito Santo é o cumprimento da promessa feita por Jesus: “vós sereis batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias” (At 1,5). No Evangelho, Lucas apresenta o Espírito Santo como a “força do Altíssimo” que fez Maria conceber o Salvador (Cf. Lc 1,35). Trata-se da mesma “força” (Lc 4,14) que “conduziu” (Lc 4,1) Jesus a realizar o Reino de Deus a favor preferencialmente dos mais sofridos (Cf. Lc 4,18-21; Is 61,1-2) e que agora ele repassa aos discípulos: “eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto” (Lc 24,49), para serem as suas “testemunhas” (At 1,8a).


2. O dom das línguas (At 2,4-13)

Lucas relata que todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At 2,4a). A partir daí, “começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (At 2,4b). Com isso, Lucas amostra os apóstolos como germe do novo Povo de Deus, capazes de falar e serem entendidos por todos, “pois cada um (cada grupo humano) os ouvia falar em seu próprio idioma” (At 2,6.8.11). Este fato novo leva os “judeus piedosos” (At 2,5) a ficarem “confusos”, “espantados e surpresos”, “admirados e perplexos” e cheios de indagações (Cf. At 2,7.8.12). Eles realmente não conseguiram assimilar o jeito novo de ser e de viver dos cristãos, ou seja, o jeito novo de ser Igreja. Além disso, “zombavam” dizendo que eles “estavam cheios de vinho doce!” (At 2,13). Notemos que igual zombaria sofreu Jesus (Cf. Mt 12,24; Mc 3,21-22; Lc 11,15; Jo 7,5; 10,20) e o apóstolo Paulo (Cf. At 26,24).

Contra a ironia do povo, Pedro esclarece (Cf. At 2,14-15) e mostra que o ocorrido era a realização da profecia de Joel (Cf. Jl 3,1-5a; Cf. At 2,17-21). Nota-se aí que o Espírito de Deus é infundido em todos, levando-os a serem profetas de um mundo novo.

Aqui também Lucas faz uma releitura da Escritura, traçando um paralelo entre o relato conhecido como “torre de Babel” (Cf. Gn 11,1-9) e a cena do “Pentecostes”, para esclarecer o fenômeno do “dom das línguas”. Segundo a narrativa da “torre de Babel” (do hebraico: Bab: portão + Él: Deus; daí: portão de acesso a Deus), “todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras” (Gn 11,1). Mas quando o povo começou a buscar auto-suficiência e ambição, querendo ocupar o lugar de Deus, “Babel” tornou-se Bilbul (da raiz verbal hebraica balál: confundir), como se vê: “Vamos descer e confundir a língua deles” (Gn 11,7a). Esta situação foi posteriormente denunciada por Isaías (Cf. Is 33,19).

Mas para Lucas, no dia de Pentecostes, além de “todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At 2,4a), todos os outros “ouviam falar, cada um deles no próprio idioma em que nasceram” (At 2,8). Ou seja, em Pentecostes, os povos se reúnem num único povo para ouvir a voz unificante do Espírito de Deus, que fala na cultura de cada um. É evidente que Lucas vê no ato de falar em todas as línguas do mundo a restauração da unidade perdida em Babel/Bilbul.

No Segundo Testamento, os evangelistas apresentam Jesus como o novo “Bab”, “a porta” (Cf. Jo 10,1-10; Mt 7,13-14; Lc 13,24; At 3,20; At 4,1), o acesso pleno, seguro e definitivo a Deus (Cf. Jo 14,6). O evangelista João ainda faz um comentário (no hebraico: mid’rásh) de Gn 28,10-17, para explicar o nosso acesso a Deus através de Jesus (Cf. Jo 1,50-51).

Neste paralelo estabelecido por Lucas, notamos que o centro de compreensão do Pentecostes é o “dom das línguas”. Mas o que isso significa? Conforme uma interpretação antiga, hoje comum entre diversos grupos cristãos, mais especificamente pentecostais ou neopentecostais, como também na Renovação Carismática Católica, este fenômeno é entendido numa perspectiva mágica, como êxtase, dom repentino e inconsciente de falar outros idiomas, balbucios, gemidos, etc. Seria esta uma interpretação correta?

Na Escritura, o fenômeno de falar uma língua estranha, a glossolalia (do grego γλώσσα, glóssa: língua + λαλώ, laló: falar) já era muito conhecido no antigo profetismo israelita. De fato, sob o impulso do espírito, muitos “profetizam”. Mas dentro desse contexto, tudo parece significar que se tratava de um discurso extático (transe, delírio, alienação), inatingível, ideológico, enfim, uma língua estranha, oriunda de uma casta cultural e socialmente dominante.

No primeiro livro de Samuel, por exemplo, encontramos a seguinte orientação: “entrando na cidade, você topará com um grupo de profetas descendo do lugar alto...; eles estarão em transe. Então o Espírito de Javé virá sobre você, e também você entrará em transe com eles e se transformará em outro homem” (1Sm 10,5b-6). Assim, “um grupo de profetas foi ao encontro de Saul. O espírito de Javé desceu sobre ele, que entrou em transe no meio deles. Todos os que conheciam Saul há muito tempo, o viram profetizando entre os profetas” (1Sm 10,10-11a).

Ainda no primeiro livro de Samuel, quando Saul mandou emissários para prender Davi, “eles encontraram a comunidade de profetas em transe (...). Logo o espírito de Deus veio também sobre os emissários de Saul, e eles também entraram em transe. Informado do que estava acontecendo, Saul mandou outros emissários, e também esses entraram em transe. Saul enviou ainda um terceiro grupo de emissários, e também eles entraram em transe. (...) Então o próprio Saul foi até o convento, e também ele foi tomado pelo espírito de Deus, entrou em transe e foi caminhando até chegar ao convento. Saul tirou a roupa e ficou em transe diante de Samuel, e nu ficou deitado no chão; e assim ficou o dia inteiro e toda a noite” (1Sm 19,20-24a).

E no primeiro livro dos Reis, o mensageiro real aventura-se a manipular Miquéias, o profeta de Deus, dizendo: “Veja bem! Todos os profetas estão falando a favor do rei. Procure falar como eles e predizer o sucesso” (1Rs 22,13). É evidente que Miquéias recusou!

Em todo o Segundo Testamento, o fenômeno de falar em línguas estranhas (glossolalia) acontece somente na comunidade de Corinto, na Grécia. Considerando a tese que o fenômeno de “falar em línguas” está ligado a um discurso extático (transe, delírio, alienação), inatingível, ideológico e estranho, proveniente de uma camada cultural e socialmente predominante, conforme verificamos acima, notemos brevemente o contexto social, político, econômico e religioso da cidade de Corinto na época do apóstolo Paulo.

Corinto, a segunda maior cidade grega, com cerca de 500 mil habitantes, era a Capital da província romana da Acaia. Era uma cidade portuária e comercial muito rica. Aí se ajuntava gente de todas as raças e religiões à procura de vida fácil e luxuosa, criando ambiente de imoralidade e ganância. A riqueza escandalosa de poucos contrastava com a miséria de muitos. Dois terços da população eram escravos. Neste amálgama tão heterogêneo de pessoas, no âmbito religioso, todas as religiões da época se implantavam ali, incluindo judeus e prosélitos (fanáticos, partidários, intolerantes, facciosos). Numa colina afastada chamada Acrópoles, havia o templo a Afrodite, deusa da beleza e do amor, de onde cerca de mil sacerdotisas, ao cair da tarde, desciam para se prostituir na cidade. E no campo moral, havia expressões como: “menina coríntia” para designar prostituta; ou, “viver à moda coríntia”, para se referir a uma forma dissoluta de viver.

Foi nesse contexto que o apóstolo Paulo atuou, durante “um ano e meio” (Cf. At 18,1-18), entre os anos 50 e 52, onde fundou uma comunidade cristã com pessoas da camada social mais modesta da população, gente pobre, estivadores do porto e, na maioria, pagãos convertidos (Cf. 1Cor 1,26-28). Por isso a sua firme denúncia aos escândalos que atingiam a comunidade, como incesto, julgamento em tribunais pagãos, imoralidades, etc., chegando a elaborar uma “teologia da corporeidade”, para mostrar que “o corpo é templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19).

Face a essa circunstância, na primeira Carta que Paulo escreve a esta comunidade, ele salienta que “cada um recebe o dom do Espírito para a utilidade de todos (1Cor 12,7). Além disso, ao elencar nesta mesma carta sete carismas, ele coloca por último “o dom de falar em línguas” (1Cor 12,28). E noutra listagem, na mesma Carta, ao elencar dez carismas, Paulo também põe por último “o dom de falar em línguas” (1Cor 12,10.28.30). E mesmo assim, apontando para um outro mais importante que é “o dom de as interpretar (1Cor 12,10.30; Cf. 1Cor 14,27-28).

Neste aspecto, clara e veemente é a orientação do Magistério eclesial: “o destinatário da oração em línguas é o próprio Deus, por ser uma atitude da pessoa absorvida em conversa particular com Deus. E o destinatário do falar em línguas é a comunidade. (...). Como é difícil discernir, na prática, entre inspiração do Espírito Santo e os apelos do animador do grupo reunido, não se incentivem a chamada oração em línguas e nunca se fale em línguas sem que haja intérprete” (Doc. da CNBB, 53, n. 63. Os realces gráficos são meus).

Desta feita, o apóstolo Paulo deixa claro que “o dom de falar em línguas”, prima pela ininteligibilidade ou incompreensão, pois “aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus. Ninguém o entende, pois ele, em espírito, enuncia coisas misteriosas. Aquele que fala em línguas, edifica a si mesmo” (1Cor 14,2.4a). Então, se “falar em línguas” for para auto-edificação, não seria isto injusto com os outros que não têm este dom, e que por isto mesmo não poderão edificar a si mesmos? Até porque o próprio Paulo deixa claro que nem todos têm o dom de falar em línguas (Cf. 1Cor 12,30b). Por isso, ele chega a dizer de si mesmo: “numa assembléia, porém, prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, para instruir também os outros, a dizer dez mil palavras em línguas” (1Cor 14,19). Por conseqüência, o apóstolo ensina que os carismas só são úteis quando constroem a comunidade, na medida que “cada um recebe o dom do Espírito para a utilidade de todos” (1Cor 12,7), porque “aquele que profetiza, fala aos homens: edifica, exorta, consola. Aquele que profetiza edifica a assembléia. Desejo que todos faleis em línguas, mas prefiro que profetizeis” (1Cor 14,3.4b-5).

Neste âmbito, também é evidente o ensinamento do Magistério eclesial: “A graça é antes de tudo e principalmente o dom do Espírito que nos justifica e nos santifica. Mas a graça compreende igualmente os dons que o Espírito nos concede, para nos associar à sua obra, para nos tornar capazes de colaborar com a salvação dos outros e com o crescimento do corpo de Cristo, a Igreja. São as graças sacramentais dons próprios dos diferentes sacramentos. São, além disso, as graças especiais, chamadas também ‘carismas’, segundo a palavra grega empregada por São Paulo e que significa favor, dom gratuito, benefício. Seja qual for seu caráter, às vezes extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas, os carismas se ordenam à graça santificante e têm como meta o bem comum da Igreja. Acham-se a serviço da caridade, que edifica a Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2003; Cf. LG, n. 12).

Por esta razão, o apóstolo lança um forte apelo aos cristãos de Corinto: “Aspirem aos dons mais altos. Aliás, vou indicar para vocês um caminho que ultrapassa a todos: ainda que eu falasse línguas, a dos homens e dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um sino ruidoso ou como um címbalo estridente” (1Cor 12,31b—13,1). Portanto, “a caridade é o primeiro dom e o mais necessário, pelo qual amamos a Deus acima de tudo e o próximo por causa dele” (LG, n. 42). De fato, a caridade é o amor em abundância, “a boa medida, calcada, sacudida, transbordante” (Lc 6,38). Segundo Bento XVI, “a caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é ‘meu’; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é ‘dele’, o que lhe pertence” (Carta Encíclica Caritas in Veritate, sobre o desenvolvimento humano integral, na caridade e na verdade, n. 6).

Na verdade, Paulo não condena o fenômeno de “falar em línguas”. Ele apenas mostra a sua limitação e o ridículo em que a comunidade pode cair, como se vê: “se, por exemplo, a igreja se reunir e todos falarem em línguas, os simples ouvintes e os incrédulos que entrarem não dirão que estais loucos?” (1Cor 14,23). Esta advertência de Paulo é importante porque “Deus não é o Deus da desordem, mas da paz” (1Cor 14,33). Deste modo, Paulo recomenda vivamente a “profecia” (Cf. 1Cor 14,1.5.24-25), pois é o dom pelo qual alguém, sob a inspiração do Espírito Santo, revela com clareza o Projeto de Deus na história, levando a comunidade à conversão, ao esclarecimento da fé e ao compromisso, para transformar a realidade e construir o Reino de Deus, e não apenas ficar comovida, extasiada. Porque não basta se comover (abalar-se, agitar-se, enternecer-se); é preciso mover (agir, fazer caminho, mudar a situação).

Segundo a Bíblia, profeta (do grego: πρoφήτης, prophétes) é aquele que fala em nome de Deus. É, pois, um evangelizador, um comunicador de assuntos espirituais aos participantes de reuniões comunitárias, aos quais se dirigem palavras de exortação e encorajamento. Trata-se de um dom para o bem da comunidade e não tem em vista adivinhações futuras. Assim sendo, pede o Magistério eclesial, que “haja grande discernimento quanto ao dom da profecia, eliminando qualquer dependência mágica e até supersticiosa” (Doc. da CNBB, 53, n. 65).

A este propósito, Bento XVI nos adverte que ‘nós podemos ser tentados a reduzir a vida de fé a uma questão de mero sentimento, enfraquecendo assim o seu poder de inspirar uma visão coerente do mundo e um diálogo rigoroso com tantas outras perspectivas que lutam por conquistar as mentes e os corações dos nossos contemporâneos” (Homilia durante a Celebração Eucarística com bispos, seminaristas, noviços e noviças, na Catedral de Sidney, Austrália, 19/7/2008. O realce gráfico é meu).

Ora, na cena do Pentecostes (Cf. At 2) Lucas corrobora a posição do apóstolo Paulo. Ele ressalta a inteligibilidade, isto é, todos os povos entendem e compreendem. Neste sentido, Lucas quer salientar não tanto o “dom de falar em línguas”, mas o fato que todos “ouviam falar, cada um deles, no próprio idioma em que nasceram” (At 2,8), que todos “ouvem apregoar em suas próprias línguas as maravilhas de Deus” (At 2,11).

Santo Tomás de Aquino, um dos maiores doutores da Igreja de todos os tempos assim nos ensinou: “Quanto ao dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram poucos os consagrados para pregar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos povos falassem as de todos. Pelo qual disse o Apóstolo: ‘Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós’ (1Cor 14,18). E em Atos 2,4, se disse: ‘Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja primitiva muitos alcançaram de Deus este dom’” (AQUINO, Santo Tomás de. Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios. Disponível em: <www.veritatis.com.br/article/4974>. Acessado em: 02 de abr de 2009. Os realces gráficos são meus).

Esta posição opõe-se inteiramente à interpretação dos círculos pentecostalistas da atualidade. Entenderemos melhor Atos 2, ao percebermos que o livro todo foi escrito já no final do 1º Século, provavelmente entre os anos 80 e 90 da nossa era, época em que as comunidades já haviam se espalhado e atingido outras realidades, outros ambientes, povos e culturas, graças a ação dos grandes missionários como Paulo, Barnabé, Silas, etc..

Nesse sentido, como já vimos acima, mais do que histórico, o relato de Pentecostes, é “simbólico” (no grego: simbolón, de simbálo: amontoar, reunir, ligar). Assim, a proposta de Lucas foi “reunir” em Jerusalém todos os povos e localidades onde já havia chegado o anúncio do evangelho na língua nativa de cada lugar: Pártia, Média, Elam, Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frigia, Panfília, Egito, Líbia, Roma, Creta, Arábia, além dos judeus e pagãos convertidos (Cf. At 2,9-11a).

De fato, Lucas parece querer convergir a ação de Jesus e da comunidade para a cidade de Jerusalém, tanto no Evangelho (Cf. Lc 2,22; 9,51.53; 13,22.33; 18,31; 24,47) como nos Atos dos Apóstolos (Cf. At 1,8; 2,5; 8,1; 15,2; 21,13). A partir daí, podemos concluir que duas eram as intenções fundamentais do autor: mostrar que o novo povo de Deus goza de unidade na diversidade; e que a evangelização deve estar dentro da realidade cultural de cada povo, em sua época ou ambiente, pois Jesus é o fermento em qualquer sociedade.

Foi assim que a partir do “dom das línguas” os apóstolos, pelo impulso do Espírito Santo, começaram a “anunciar” e a “testemunhar” as “maravilhas de Deus” (At 2,11b), de modo a serem entendidos por todos. A expressão “maravilha” é um termo técnico que a Bíblia usa para indicar as grandes intervenções de Deus na história, dentre as quais se destacam a libertação do povo do Egito (Cf. Ex 15,1-20; 1Sam 2,1-10; Sl 3; Sl 18(17), o nascimento de Jesus (Lc 1,46-55.68-79) e a sua ressurreição, a última “maravilha” de Deus, a sua maior intervenção na história da humanidade, como nos mostra o apóstolo Pedro: “Deus ressuscitou a este Jesus. E nós todos somos testemunhas disto” (At 2,32; Cf. Hb 1,1-4). Desse modo, todas as “maravilhas de Deus” devem ser anunciadas em todas as línguas, a todos os povos, e em todas as épocas.


3. O kérigma (At 2,22-24.32-33.36)

Face ao fenômeno de Pentecostes, o grupo de “judeus devotos” se divide. Então Pedro, “repleto do Espírito Santo” (At 2,4a), “de pé, junto com os onze, levantou a voz e assim lhes falou” (At 2,14), esclarecendo que o ocorrido era a realização da profecia de Joel (Cf. Jl 3,1-5 = At 2,17-21). Em seguida, com intrepidez, transmite o “kérigma” (do verbo grego κηρύσσω: kerisso: proclamar, anunciar, pregar), isto é, a proclamação fundamental de Jesus Cristo, a partir de três aspectos: a) sua prática sinalizadora da presença do Reino de Deus, através dos “milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele” (At 2,22); b) sua morte, como conseqüência da sua ação: “vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios” (At 2,23; Cf. At 10,37-39); c) sua ressurreição, como sinal da aprovação de Deus à sua prática e da condenação da estrutura dominante que o matou: “Deus o ressuscitou, libertando das angústias da morte, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder” (At 2,24; Cf. At 10,40-41). Por isso, “Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,36).

Além do mais, na transmissão do kérigma, Pedro soube muito bem identificar o “Jesus” histórico com o “Senhor e Cristo” da ressurreição, o que é uma questão fundamental na alta Cristologia: “Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,36). Jesus é agora o Senhor da glória, o Cristo da fé. Este é o conteúdo essencial do anúncio profético do Reino iniciado por Jesus, e que levou tantos outros a se somarem na caminhada dos primeiros cristãos.


4. A conversão como decorrência do kérigma (At 2,37-41)

O kérigma de Pedro, enquanto autêntica profecia (anúncio, denúncia e apelo à conversão), levou os seus ouvintes a “sentirem o coração traspassado” (At 2,37a) e a buscarem uma solução: “Irmãos, que devemos fazer?” (no grego: tí poiésomen: At 2,37; Cf. Lc 3,10-14a). Pedro então responde categoricamente: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2,38; Cf. At 10,44-48: aqui também em meio aos “pagãos” o Espírito Santo é doado e eles igualmente são batizados. De fato, o Espírito Santo não é apanágio de alguns). E “com muitas outras palavras (Pedro) dava seu testemunho e exortava-os dizendo: ‘Salvai-vos dessa geração perversa” (At 2,40).

Nessa perspectiva “salvar-se”, ou melhor, “deixar-se salvar”, é essencialmente deixar as estruturas injustas e aderir ao Projeto de Deus. Com isso, Lucas deixa claro, tanto nos Atos dos Apóstolos quanto no Evangelho, que a conversão verdadeira só acontece quando se assume um fazer novo, uma prática nova (“que devemos fazer?”), em função de uma nova humanidade.


5. O nascimento de uma nova comunidade (At 2,42-46)

A partir da doação do Espírito, a conseqüência concreta e imediata do anúncio profético e do compromisso do Batismo, é a gestação e o nascimento de uma nova comunidade, sinal do Reino de Deus. E o compromisso para manter esta nova comunidade era levado a sério, pois “todos eles mostravam-se assíduos” (At 2,42a) em com quatro aspectos essenciais: a) no “ensinamento dos apóstolos” (At 2,42b), isto é, a Escritura era explicada aos recém-convertidos à luz da morte e ressurreição de Jesus; b) na “comunhão fraterna” (At 2,42c), ou seja, numa concreta “comunhão material”, pois eles “punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo a necessidade de cada um” (At 2,44-45), realizando a Escritura que pede: “em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Javé vai abençoar-te” (Dt 15,4). Essa legítima solidariedade fortalecia a comunhão dos corações; c) na “fração do pão” (At 2,42d), o que se refere não só às refeições com Jesus, mas também à “última ceia” (Cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,15-20; 1Cor 11,23-25), onde Jesus anuncia a doação de sua vida, a favor de nossa vida; d) e nas “orações” (At 2,42e), colocando-se diante de Deus como o único absoluto, fazendo lhe pedidos, mas principalmente dando-lhe graças pela libertação recebida (Cf. At 4,23-31).

Com isso, a comunidade ia se construindo pelo “temor” (no grego: fóbos: reverência, respeito, observância) do testemunho dos apóstolos, porque eles demonstravam com a própria vida a ação de Deus. Na verdade, quem se compromete com Jesus, continua a realizar seus gestos, através do dinamismo do Espírito Santo.

Porém, é claro, a comunidade crescia não isenta dos conflitos. Só os Atos dos Apóstolos fala deles por mais de cem vezes. São conflitos das mais variadas ordens. Isso só nos leva a concluir seguramente que onde o evangelho é anunciado e testemunhado com fidelidade, o conflito aparece. Mas é no conflito que as pessoas e as comunidades crescem e amadurecem. É dentro do conflito que se fortalecem a fé, a esperança e o amor. Por isso, é importante ver em profundidade como os primeiros cristãos viveram e enfrentaram tantos conflitos.


Conclusão (At 2,47)

Por fim, Lucas ressalta o vigoroso e irresistível crescimento da Igreja, não só na graça, mas também na quantidade. Trata-se de uma tremenda expansão contagiante e sedutora. Uma vez experimentado o Reino de Deus e com ele se comprometido, já não havia mais como voltar atrás. Portanto, se por um lado a comunidade cristã deve crescer na qualidade pela pregação da Palavra (Cf. At 6,7; 12,24; 3,48-49; 19,20), por outro, quantitativamente também ela deve avançar, pois “o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos” (At 2,47). E se qualidade é o que conta, qualidade mais quantidade é muito melhor, como podemos verificar (Cf. At 1,26; 1,15; 2,41.47; 4,4.32a; 5,14; 6,1.7; 8,12.38b; 9,31.35.42; 11,21.24b; 13,48b; 14,21; 16,5.15a.33a; 17,4.12.34; 18,8.10c; 19,7).

Esse crescimento estrondoso é resultante do verdadeiro seguimento de Jesus. Neste sentido, “seguir Jesus é ‘per-seguir’ seu caminho, ‘pro-seguir’ sua causa e ‘con-seguir’ sua vitória” (BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo, paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 160).

quarta-feira, 13 de maio de 2009

"JUNTO COM MARIA, MÃE DE JESUS" (At 1,14)

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Hoje, dia 13 de maio, a Igreja Católica, no mundo inteiro, presta especial devoção à Maria, Mãe de Jesus, sob o título de Nª Sª de Fátima, relembrando a primeira aparição da Virgem a três adolescentes, em 1917, na cidade de Fátima, Portugal. A mensagem por ela pronunciada pedia orações pela conversão das pessoas e pela paz no nosso planeta. Em razão desta memória, e por estarmos no “Mês de Maria”, inspirei-me a escrever este artigo, a fim de expressar a minha devoção particular a ela e, quem sabe, ajudar os meus leitores a despertar e fortalecer a sua fé em Jesus e a sua confiança na Mãe do Filho de Deus.

Para esta pequena abordagem, parto de uma questão essencial: o que é Maria na América Latina, no Brasil e em nossas comunidades? Esta é uma indagação pertinente, porque falar da América Latina, falar do Brasil, é falar de Maria. Para nós, cristãos-católicos, é certo que Maria, a Mãe de Jesus, é Mãe de todos os povos, de todas as raças e culturas. Inegavelmente, “Maria Santíssima é presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos” (Documento de Aparecida, n. 524). É como proclamou eloqüentemente D. Hélder Câmara na “Invocação à Mariama”, na Missa dos Quilombos: “Mariama, Nossa Senhora, mãe de Cristo e Mãe dos homens! Mariama, Mãe dos homens de todas as raças, de todas as cores, de todos os cantos da Terra”, ou ainda como bem expressou D. Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, com um tom bastante poético, que a Virgem Maria quis ser “branca” em Fátima, “indígena” em Guadalupe e “negra” em Aparecida. Assim, em sua maternidade, Maria fez de todos os povos um único povo, o povo de filhos e filhas de Deus.

No entanto, a grande maioria dos estudiosos da Bíblia (exegetas) afirma que de Maria sabemos quase nada. A figura de Maria é ainda muito poética e sentimental, e nem sempre corresponde à realidade. Devemos falar de Maria a partir do Segundo Testamento e do que nos ensina a Igreja, através do seu Magistério, considerando a tradição e os dogmas.


1. O que nos ensina o Magistério eclesial?

Nesses tempos recentes, o Magistério da Igreja nos ensina que Maria “é saudada também como membro supereminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo excelente na fé e caridade. E a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade filial como mãe amantíssima” (Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 52).

E na II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e caribenho, em 1968, foi dito que “em torno de Maria como Mãe da Igreja, que com seu patrocínio assistiu a este continente desde sua primeira evangelização, imploramos as luzes do Espírito Santo...” (Medellín. Discurso de abertura).

Novamente reunidos para a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e caribenho, em 1979, os bispos disseram que “em nossos povos, o Evangelho tem sido anunciado, apresentando a Virgem Maria como sua realização mais alta. Como em Guadalupe, os outros santuários marianos do Continente são sinais do encontro da fé da Igreja com a história latino-americana. A devoção a Maria é um elemento ‘qualificador’ e ‘intrínseco’ da ‘genuína piedade da Igreja’ e do ‘culto cristão’. Sabe o povo que encontra Maria na Igreja Católica. A piedade Mariana é com freqüência o vínculo resistente que mantém fiéis à Igreja setores que carecem de atenção pastoral adequada. O povo fiel reconhece na Igreja a família que tem por mãe a Mãe de Deus. Na Igreja confirma o seu instinto evangélico segundo o qual Maria é o modelo perfeito do cristão, a imagem ideal da Igreja” (Documento de Puebla, nn. 282-285).

Outra vez reunidos para a IV Conferência do Episcopado Latino-americano e caribenho, em 1992, os bispos referiram-se à Virgem Maria como aquela “que pertence tão profundamente à identidade cristã de nossos povos latino-americanos” (Documento de Santo Domingo, n. 85) e também como “modelo e figura da Igreja ante toda forma de necessidade humana” (DSD, n 163).

Em outubro de 2002, João Paulo II convidou toda a Igreja a contemplar, com Maria, o rosto de Cristo a partir da recitação do Rosário, chamado de “compêndio do Evangelho”, o qual tem uma fisionomia tipicamente bíblica e cristológica (Cf. Carta apostólica Rosarium Virginis Mariae, n. 19). E por ocasião do Ano da Eucaristia, em 2003, João Paulo II reafirmou a “exigência de uma espiritualidade eucarística, apontando como modelo Maria, ‘mulher eucarística’” (Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n.53).

Atualmente, mais uma vez reunidos para a V Conferência do Episcopado Latino-americano e caribenho, em 2007, os bispos se referiram à Virgem Maria como “a imagem esplêndida da conformação ao projeto trinitário que se cumpre em Cristo. Desde a sua Concepção Imaculada até sua Assunção, recorda-nos que a beleza do ser humano está toda no vínculo do amor com a Trindade” (Documento de Aparecida, n. 141). Pois “a máxima realização da existência cristã como um viver trinitário de “filhos no Filho” nos é dada na Virgem Maria que, através de sua fé (Cf. Lc 1,450) e obediência à vontade de Deus (Cf. Lc 1,38), assim como por sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus (Cf. Lc 2,19.51), é a discípula mais perfeita do Senhor. (DA, n. 266). Desse modo, “com ela, providencialmente unida à plenitude dos tempos (Cf. Gl 4,4) chega o cumprimento da esperança dos pobres e do desejo de salvação” (DA, n. 267).

Assim, desde a origem do cristianismo, “perseverando junto aos apóstolos à espera do Espírito (Cf. At 1,13-14), ela cooperou com o nascimento da Igreja missionária, imprimindo-lhe um selo mariano que a identifica profundamente. Como mãe de tantos, fortalece os vínculos fraternos entre todos, estimula a reconciliação e o perdão e ajuda os discípulos de Jesus Cristo a experimentarem como uma família, a família de Deus” (DA, Ibidem).

Ainda nas conclusões dessa mesma Conferência Episcopal, os bispos dizem que “Maria, Mãe da Igreja, além de modelo e paradigma da humanidade, é artífice de comunhão. Por isso, como a Virgem Maria, a Igreja é mãe. Esta visão mariana da Igreja é o melhor remédio para uma Igreja meramente funcional ou burocrática” (DA, n. 268). Em nossas comunidades, a forte presença de Maria “tem enriquecido e seguirá enriquecendo a dimensão materna da Igreja e sua atitude acolhedora, que a converte em ‘casa e escola da comunhão’ e em espaço espiritual que prepara para a missão” (DA, n. 272).

No que se refere à missão da Igreja, dizem os bispos que “Maria é a grande missionária, continuadora da missão de seu Filho e formadora de missionários” (DA, n. 269). Hoje, “quando em nosso continente latino-americano e caribenho se quer enfatizar o discipulado e a missão, é ela quem brilha diante de nossos olhos como imagem acabada e fidelíssima do seguimento de Cristo” (DA, n. 270). Maria de Nazaré, que “‘conservava todas estas recordações e meditava em seu coração’ (Lc 2,19; Cf. 2,51), ensina-nos o primado da escuta da Palavra na vida do discípulo e missionário” (DA, n. 271).

Por aí vemos que Maria é presença constante na vida e na missão da Igreja. Portanto, “Não se pode falar da Igreja sem que esteja presente Maria” (Exortação Apostólica Marialis Cultus, sobre o culto mariano, n. 28). Assim, podemos afirmar que o momento que estamos vivendo é o momento de Maria, e que, por isso mesmo, a nossa espiritualidade de povo latino-americano é uma espiritualidade Mariana.

2. E o que nos diz o Segundo Testamento?

Alguns autores do Segundo Testamento, embora não pretendendo fazer uma biografia da Virgem Maria, recolheram e conservaram determinados textos que fazem referência a ela. Vejamos alguns relatos dentro de uma “linha do tempo”, elencados numa ordem cronológica:

O apóstolo Paulo, na carta aos Gálatas (cerca de 55 d.C.), mesmo não mencionando o nome de Maria, nos oferece uma referência explícita à ela: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher (Gl 4,4);

O evangelista Marcos (cerca de 65 d.C.), por sua vez, nos mostra que essa “mulher” tem nome, como aparece numa das perguntas feitas na sinagoga de Nazaré: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria?” (6,3). Quanto a José, o pai de Jesus, ele aí não aparece no texto porque provavelmente já tinha morrido;

O evangelista Mateus (cerca de 75 d.C.), já no início do Evangelho, faz questão de apresentar o pai terreno de Jesus: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus” (Mt 1,16), pois ela “achou-se grávida pelo Espírito Santo” (Mt 1,18.20). Com isso, ele defende a concepção virginal de Maria e nos mostra que Jesus é o Filho de Deus. Mas coloca José como sujeito participativo, comprometido, tanto no anúncio do anjo: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher... Ela dará à luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus” (Mt 1,20b), como na pergunta dos que estavam na sinagoga, a respeito de Jesus: “Não é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55);

O evangelista Lucas (cerca de 85 d.C.), no seu “primeiro relato” (At 1,1), o Evangelho, escrito “após cuidadosa investigação” (Lc 1,3), faz de Maria figura protagonizante: na anunciação: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28), ao que ela responde num contexto de fé-compromisso: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38); na visitação, saudada por Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42); na proclamação do Magnificat (Lc 1,46-55); ao dar à luz o seu Filho (Lc 2,1-20); na apresentação de Jesus (Lc 2,22-40); no reencontro do menino Jesus perdido no Templo (Lc 2,41-52); na participação ativa do ministério de Jesus (Lc 3—24). E no seu segundo relato, os Atos dos Apóstolos, para falar do envio do Espírito Santo “no dia de Pentecostes” (At 2,1-4), Lucas coloca Maria como presença decisiva na gestação da Igreja: “Todos, unânimes, perseveravam na oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus” (At 1,14).

O evangelista João (cerca de 95 d.C.), no Quarto Evangelho, sem jamais identificar Maria pelo seu nome próprio, apresenta a “mãe de Jesus”, no começo e no fim da vida pública de Jesus. Primeiro, nas “núpcias de Kanáh” (do verbo hebraico kanáh: resgatar, redimir: Cf. Jo 2,1-12), como inspiradora da sua missão e como co-redentora, por participar ativamente do processo de salvação, animando a comunidade a viver o seu exemplo de uma fé-serviço: “Eu sou a serva do Senhor” (Lc 1,38). Por isso, Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Nesta cena, a “mãe de Jesus” nos “ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade que devem distinguir os discípulos de seu Filho. Indica, além do mais, qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, ‘sintam-se como em sua casa’. Cria comunhão e educa para um estilo de vida compartilhada e solidária, em fraternidade, em atenção e acolhida do outro, especialmente se é pobre ou necessitado” (DA, n. 272). Depois, no fim do Evangelho, quando João coloca a “mãe de Jesus” “perto da cruz”, junto com o “discípulo a quem (Jesus) amava” (Jo 19,25-27). Exegeticamente entendemos este episódio como a ação do Redentor que, na cruz, une o povo da Primeira Aliança ao povo da Segunda Aliança. Ou seja, a Igreja-Mãe, simbolizada pela “mulher” acolhe a nova família de Deus (“Mulher, eis aí o teu filho!”), simbolizada pelo “discípulo a quem amava” (“Eis a tua mãe!”).

E no livro do Apocalipse, o evangelista João fala de “uma mulher” que “estava grávida” e que “deu à luz um filho, um varão, que irá reger todas as nações com um cetro de ferro” (Ap 12,5a). Na Mariologia posterior, essa “mulher” passou a ser identificada com Maria, a Mãe de Jesus, e o “filho” com o Messias davídico.


3. E na história da Igreja?

A Bíblia nos mostra que desde o começo os cristãos se reuniam para orar “com Maria, a mãe de Jesus” (At 1,14), certos de que ela mostrava o caminho que é Jesus, como ele próprio se auto-definiu: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). De fato, a verdadeira espiritualidade Mariana deve conduzir ao evangelho e a Jesus, pois Maria não é o fim, mas meio, a “medianeira”. Posteriormente, os cristãos acharam um jeito simples de prestar seu amor à Mãe de Jesus compondo a “Ave-Maria”. Esta é uma oração que nasceu da Bíblia: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” (Lc 1,28.42) e da vida do povo: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte”, invocação esta acrescentada após o 3º Concílio Ecumênico de Éfeso, na Ásia Menor (431 d.C.).

Pela recitação do Rosário, o povo acabou descobrindo um modo singelo de se aproximar cada vez mais da pessoa de Jesus através de Maria. De fato, “esta familiaridade com o mistério de Jesus é facilitada pela reza do Rosário, onde o povo cristão aprende de Maria a contemplar a beleza do rosto de Cristo e a experimentar a profundidade de seu amor. Mediante o Rosário, o cristão obtém abundantes graças, como recebendo-as das próprias mãos da mãe do Redentor” (DA, n. 271).

Com o passar dos séculos, vemos que “os diversos nomes e os santuários espalhados por todo o Continente testemunham a presença de Maria próxima às pessoas e, ao mesmo tempo, manifestam a fé e a confiança que os devotos sentem por ela. Ela pertence a eles e eles a sentem como mãe e irmã” (DA, n. 269).


Conclusão

Em vista do exposto, podemos afirmar que o povo cristão é fortemente devoto de Nossa Senhora. Não há quem não reze ao menos uma “Ave-Maria”. Porque em Maria mulher, mãe de Jesus e mãe da Igreja se descobre já realizado o ideal que alimenta há muitos séculos, ideal da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Pois Maria nos ensina, na prática, que Deus quer fazer conosco tudo o que ele já fez antecipadamente nela e com ela. O povo soube descobrir quem Maria realmente é a partir do que nos ensina a Bíblia e a caminhada da Igreja. É como dizia São Gregório de Nazianzo (Capadócia, Ásia Menor: 330-390), um dos chamados “Padres da Igreja”: “Se algum não reconhecer a Santa Maria como Mãe de Deus, é que se acha separado de Deus”.

Em nossa América Latina tão sofrida, a partir da fé em Jesus Vivo e da devoção a Maria, o povo de Deus na busca da libertação, cada vez mais avança na consciência, na solidariedade e na organização contra tudo aquilo que oprime. E aí Maria é não só a companheira de sua caminhada, mas também a porta-voz de seus desejos e esperanças.

Então, atendamos o pedido da Mãe de Jesus, sob o título de Nª Sª de Fátima, de rezarmos sempre. Assim sendo, supliquemos com muita fé em Deus e que “nos ajude a companhia sempre próxima, cheia de compreensão e ternura, de Maria Santíssima. Que ela nos mostre o fruto bendito de seu ventre e nos ensine a responder como fez no mistério da anunciação e encarnação” (DA, n. 553). Assim seja!

domingo, 10 de maio de 2009

"FUI FILHO DO MEU PAI E AMADO TERNAMENTE POR MINHA MÃE" (Pr 4,3)

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas?” (Is 49,15a). Com esse belo poema, o Dêutero-Isaías, profeta do exílio babilônico (cerca de 550 a.C.), dirige-se a Sião (Jerusalém), apresentada aqui na figura de mulher-esposa. Como mãe abandonada pelo marido, indefesa, ela não pôde proteger os seus filhos; o inimigo os levou como prisioneiros de guerra, e ela ficou desamparada. Esta imagem de Jerusalém esposa-mãe, bem serviu para orientar este meu artigo a respeito do “Dia das mães”.

O “Dia das Mães” tem sua origem na mais remota mitologia grega. Conta-se que na Grécia Antiga, constumava-se celebrar uma grande festa em honra a Rhea, mãe de Zeus e esposa de Kronos, no início da primavera, período em que a primavera renasce, se revitaliza.

Com o passar dos séculos, hoje em dia, em muitos países do mundo, como os Estados Unidos, Brasil, Dinamarca, Finlândia, Japão, Turquia, Itália, Austrália e Bélgica o “Dia das Mães” é comemorado no segundo domingo de maio. Aqui no Brasil, foi a Associação de Moços de Porto Alegre quem deu início a estas comemorações, em 1918. Mas só em 1932, o então presidente da República Getúlio Vargas oficializou para todo o país o segundo domingo de maio como o “Dia das Mães”.

Sei que é muito incômodo par um homem falar do tema da mulher e mãe. No entanto, diante desta ocasião tão especial, eu não poderia deixar de contribuir com uma reflexão, mesmo que breve, a este propósito, pois penso que sobre a “mulher-mãe”, falem as mulheres. Porque o que no mínimo eu posso e devo fazer é denunciar o machismo vigente que ao longo dos séculos acabou desigualando a quem Deus criou com tamanha ternura para viverem juntos, em companhia de amor.

Por isso, além de denunciar, é preciso destruir esta “mentalidade machista que ignora a novidade do cristianismo” (DA, n. 453) e que tenta desobrigar a figura do pai em relação à mãe. Porque assim foi desde o início quando “Deus criou o homem e a mulher à sua imagem, os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos’” (Gn 1,27-28). Desta feita, o dom da fecundidade coloca igualmente o homem e a mulher como sujeitos ativos da paternidade-maternidade. O homem não é pai sozinho, nem a mulher sozinha torna-se mãe.

No momento atual, a mulher-mãe, a partir da sua luta pela igualdade sexual, deve apagar todos os mitos que construíram sobre ela, pois a mulher foi mistificada, ludibriada. E eu indico aqui dois mitos que ainda hoje pesam sobre a mulher-mãe. O primeiro, é o da “mulher dona de casa”. Neste aspecto, a mulher-mãe é tida como “a senhora, a rainha do lar”. Por outro lado, o homem é o “rei do mundo”. Porém, como o mundo está dentro de casa, o homem acaba “reinando” também aí. A casa é uma habitação escancarada, todos entram e saem, vão trabalhar, passear, etc.. Com isso, a televisão e a internet invadem. Por conseqüência, a “rainha do lar” acaba tornando-se a rainha do nada, porque o lar está dominado pelo mundo e o mundo pelo homem. Mas o mito exige que ela seja uma perfeita dona de casa; tem que trazer tudo preparado para o marido-homem. Isso é uma enganação, porque o homem deve ser também o “senhor do lar”. Então, por que só a mulher tem que passar roupa, fazer comida, cuidar dos filhos e tantas outras coisas? Por que não também o homem? Face a tantas justificativas que se tentou dar ao longo dos séculos, todas inaceitáveis, podemos concluir que, de fato, o único motivo que fecha a mulher no lar é o machismo. Portanto, esse primeiro grande mito deve ser aniquilado.

O segundo mito é o da “mulher educadora dos filhos”. Por que só a mulher-mãe deve educar os filhos? Por que não também o homem-pai? Atualmente é muito comum a existência de casais que, enquanto a mulher ainda está no trabalho, o homem chega em casa, dá banho nas crianças, troca as fraldas e lhes dá de comer. O fato de os dois trabalharem fora é muito importante, porque um dá confiança ao outro. O homem se sente apoiado na mulher e ela nele. Desse modo, igualmente os dois compartilham a educação dos filhos e o trabalho da casa. Mas a sociedade atual é uma sociedade sem a figura do pai ou do pai ausente. Isso acarretou a desestabilização da família tradicional. Os filhos e as filhas geralmente não têm o pai dentro de casa e, conseqüentemente, ficam privados da presença paterna na educação. São filhos e filhas sem pai.

Esta situação leva à patologia, pois a mulher-mãe é uma parte apenas; a outra parte é o homem-pai, e este deve estar presente na educação dos filhos como presença masculina, não machista. Porque, segundo muitos psicólogos, o pai é uma referência importante de masculinidade, embora a construção da masculinidade também é transmitida pelas mães, a partir do modo como elas percebem a masculinidade. Assim, não é apenas a mulher-mãe a “dona da casa”, mas o casal, e nem tampouco somente a mulher-mãe a “educadora dos filhos”, mas os dois, pai e mãe juntos. É claro que tantos fatores hoje levam filhos e filhas a crescerem na presença somente do pai ou somente da mãe.

Por isso, não dá para ignorar, tristemente, que o número de separações e divórcios cresce galopantemente a cada dia. Para se ter uma idéia, em números absolutos, os divórcios concedidos passaram de 30.847, em 1984, para 179.342 em 2007, um número 200% maior que o verificado em 1984. Somando separações e divórcios, houve 231.329 uniões desfeitas em 2007, ou seja, uma para cada quatro casamentos (Cf. Estatísticas do Registro Civil 2007, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE).

Muitos pesquisadores dessa situação (psicólogos, sociólogos) afirmam que o aumento tanto das separações como dos divórcios é explicado não só pela mudança de comportamento na sociedade brasileira. Mas também pela criação da Lei 11.441, de 04/01/2007, que desburocratizou os procedimentos de separações e de divórcios consensuais, permitindo aos cônjuges realizarem a dissolução do casamento, através de escritura pública, em qualquer tabelionato do país (Cf. (JARDIM, Idelina. Pesquisa: cresce a taxa de divórcio no Brasil. Jornal do Brasil, 04/12/08).

Quando o homem e a mulher, isto é, o pai e a mãe se realizam juntos na vida conjugal, os filhos não têm complexos, não padecem. Daí a importância da mulher-mãe se realizar tanto quanto o homem-pai em todos os aspectos da vida. Senão tentarão compensar nos filhos o seu fracasso. Os filhos devem ter a oportunidade de serem eles mesmos. O homem-pai não deve ser autoritário com os filhos, nem deve interferir no amor da mulher-mãe para com os filhos. Desse modo, “a partir de uma figura de pai bem realizada, a criança pode idealizar uma imagem benfazeja de Deus” (BOFF, Leonardo. O eclipse do pai, 27/08/2004).

Quando o homem-pai e a mulher-mãe se constroem juntos na vida conjugal, os filhos não padecem. Pois “é no seio da família que o ser humano aprende a ser verdadeiramente humano” (Texto-Base, CF 2008, n. 263). Daí a necessidade da mulher-mãe se realizar tanto quanto o homem-pai em todos os aspectos da vida. Do contrário, tentarão compensar nos filhos o seu fracasso. Os filhos devem ter a oportunidade de serem eles mesmos.

Em vista disso, proponho que nem o machismo nem o feminismo são alternativas, mas, sim a reciprocidade. Este relação sintonizada tem a vantagem de afirmar, desde a origem, a mútua abertura de um ao outro. Pois o homem-pai e a mulher-mãe são dois inteiros, mas inacabados e, sempre se fazendo cotidianamente, se encontram na atração mútua e na liberdade de entrega.

A esse respeito, o melhor exemplo de verdadeira harmonia conjugal é aquele conservado pelo evangelista Lucas na passagem conhecida como o “Reencontro de Jesus no Templo” (Lc 2,41-52). Neste episódio, Maria se apresenta inserida na sociedade da época, juntamente com José, seu esposo, (que) era justo” (Mt 1,19a). A aflição que havia tomado o coração da mãe e esposa não era somente dela, mas igualmente do seu marido José. De fato, Maria dirige-se a Jesus como mãe e mulher casada. Ela estava lá com o seu marido em busca do filho. A preocupação é do casal: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que o teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). Vemos aí a atuação direta e dinâmica do casal, Maria e José, um casal que sabia partilhar a dois a vida e os seus contratempos: preocupações, angústias, aflições, etc.

No entanto, infelizmente este ideal de harmonia conjugal no trato com os filhos está muito distante de ser realizado hoje em dia, mais do que em outras épocas. Porque segundo recente pesquisa realizada a partir da pergunta sobre quem mais pratica violência contra crianças, as respostas concluíram que é a mãe. Isto porque as mulheres, que são vítimas da violência do marido (a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil) reproduzem esta mesma agressão contra seus filhos (Cf. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 17 fev. 2009. Cad. C1). Face a isso, o Dêutero-Isaías conclui animadoramente aquele seu poema supramencionado: “Ainda que elas os esquecessem, eu não te esquecerei” (Is 49,15b). Porque o povo é criação de Deus e Deus o ama eternamente com amor de mãe e jamais se deslembrará de um filho sequer (Cf. Is 54,8; 66,13; Sl 27/26,10; Eclo 4,10; Os 11,3-4.8c).

Para concluir, fiquemos com a bênção de Deus Pai e a proteção da Mãe de Jesus, “Maria Santíssima, (que) é presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos” (DA, n. 524), e que “como mãe de tantos, fortalece os vínculos fraternos entre todos” (DA, n. 267). Com esse exemplo maior da Virgem Maria, nossa Mãe, só me resta dizer carinhosamente a todas as mães: “Feliz dia das mães!”

sábado, 2 de maio de 2009

“O MEU PAI TRABALHA SEMPRE E EU TAMBÉM TRABALHO" (Jo 5,17).

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Ontem celebramos o “Dia Mundial do Trabalhador”. Esse “Dia” foi criado a 14/07/1889, na cidade de Paris. Os socialistas franceses resolveram convocar para o essa data um congresso operário internacional, porque nessa ocasião se comemoraria o centenário da grande Revolução Francesa. Esse congresso operário e socialista internacional contou com a participação de 300 delegados, representando cerca de 20 países. Segundo notícias da época, este foi o congresso internacional mais representativo já realizado pelo movimento socialista até então. Aí ficou estabelecido o 1º de maio como o “Dia Mundial do Trabalhador”.

A data foi escolhida em homenagem à greve geral, que aconteceu a 1º de maio de 1886, em Chicago, o principal centro industrial dos Estados Unidos naquela época. Nesse dia, milhares de trabalhadores foram às ruas para protestar pacificamente contra as condições desumanas de trabalho a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de trabalho de 13 para 8 horas diárias. No entanto, a polícia reprimiu duramente a greve, prendendo, ferindo e matando dezenas de operários.

A partir daí, o “1º de Maio” tornou-se de um dia de “luto” e de “luta”, não só pela redução da jornada de trabalho, mas também pela conquista de tantas outras reivindicações feitas por quem realmente produz a riqueza da sociedade.

Face a isso, em 1955, Pio XII instituiu o dia 1º de maio para “São José Operário, o trabalhador”, a fim oferecer a todos os trabalhadores e trabalhadoras do mundo um modelo e protetor e enaltecer a dignidade do trabalho humano. Porque José de Nazaré foi um homem exemplar: laborioso, honesto, fiel à palavra de Deus e obediente, virtudes que o Evangelho sintetiza em duas palavras: “homem justo” (Mt 1,19). João XXIII dizia que “os proletários e os operários têm como direito especial o de recorrer a São José e de procurar imitá-lo”.

Passados cento e vinte e três anos, a sociedade brasileira vive hoje em plena era da produção, na qual os trabalhadores e as trabalhadoras precisam enfrentar uma luta ferrenha para garantir um ínfimo necessário de bem-estar. Mas geralmente o salário que se percebe no final do mês é imposível para acudir as suas urgências mais essenciais. Isto é lamentável porque o “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado” para todos os trabalhadores e trabalhadoras, deve ser “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo” (CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, Cap. II, Art. 7º, IV). Este compromisso referente ao sálário mínimo é muito grave, sobretudo porque a Constituição da República foi promulgada “sob a proteção de Deus” (Ibidem. Preâmbulo).

Inegavelmente, “o trabalho é uma atividade que produz bens destinados a serem consumidos para dar satisfação às necessidades. Está integrado à cadeia: necessidades, produção, consumo” (COMBLIN, José. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 224).

Seguindo a esteira da Carta Encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII, sobre a condição dos operários, de 15/05/1891, o Magistério eclesial reafirma que “é mediante o trabalho que o homem deve procurar-se o pão quotidiano e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos (JOÃO PAULO II. Encíclica Laborem Exercens, sobre o trabalho humano. Preâmbulo).

Por isso, “em todo e qualquer sistema, independentemente das relações fundamentais existentes entre o capital e o trabalho, o salário, isto é, a remuneração do trabalho, permanece um meio concreto pelo qual a grande maioria dos homens pode ter acesso àqueles bens que estão destinados ao uso comum, quer se trate dos bens da natureza, quer dos bens que são fruto da produção. Uns e outros tornam-se acessíveis ao homem do trabalho graças ao salário, que ele recebe como remuneração do seu trabalho. Daqui vem que o justo salário se torna em todos os casos a verificação concreta da justiça de cada sistema sócio-econômico e, em qualquer hipótese, do seu justo funcionamento” (LE, n. 19).

Diante da atual realidade do trabalho, nos perguntamos: o trabalho automaticamente traz a felicidade e realização a todo ser que trabalha? O trabalho é realização existencial ou apenas uma satisfação de necessidades imediatas? Por que os menos favorecidos não podem participar dos bens de produção e dos confortos? Por que a globalização ou o mercado total não consegue incluir a todos? A recente crise econômica mundial é real ou forjada?

Quando se fala hoje em “mundialização do mercado” ou “globalização neoliberal”, não se deve pensar no trabalho apenas em âmbito individual, mas enquanto atividade coletiva, de toda sociedade humana, que se estrutura e se desenvolve graças à diversidade de atividades. Cada atividade deve ser considerada não só em si mesma, mas também em relação ao todo. Porque “a família humana, sobretudo devido ao aumento de múltiplos meios de comunicação entre as nações, vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só comunidade espalhada pelo mundo inteiro” (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 33). Assim sendo, todos devem ser incluídos no processo de geração de riquezas.

O Magistério eclesial também ensina que “melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus” (GS, n. 34); é serviço prestado à vida. Na verdade, “quando age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de si e eleva-se sobre si mesmo. Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens externos que se possam conseguir. O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem. Do mesmo modo, tudo o que o homem faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade, uma organização mais humana das relações sociais, vale mais do que os progressos técnicos” (GS, n. 35).

Mais recentemente, o Magistério eclesial asseverou que “na beleza da criação, que é obra das mãos de Deus, resplandece o sentido do trabalho como participação de sua tarefa criadora e como serviço aos irmãos e irmãs. Jesus, “o carpinteiro” (Mc 6,3), dignificou o trabalho e o trabalhador e recorda que o trabalho não é um mero apêndice da vida, mas que constitui uma dimensão fundamental da existência do homem na terra, pela qual o homem e a mulher se realizam como seres humanos. O trabalho garante a dignidade e a liberdade do homem, e é provavelmente a chave essencial de toda a questão social” (DA, n. 120).

Frente a este aspecto, podemos falar de uma “espiritualidade cristã do trabalho”. Um dos documentos mais importantes do Magistério da Igreja que trata desse tema é a referida Encíclica Laborem Exercens, que chama a atenção para a contribuição do próprio Cristo como modelo, inspiração e espiritualização do mundo do trabalho. Pois Ele mesmo o exerceu silenciosamente no seu espaço familiar e social, usando-o como símbolo e conteúdo de pregação do Reino de Deus, e fazendo do próprio anúncio a sua experiência de trabalho. Também o apóstolo Paulo manteve o espírito de Jesus no seu modo de abordar a comunidade cristã do primeiro século, isto é, trabalho como meio de vida, como condição do exercício da caridade, como partilha e caminho concreto de profunda identificação com o próprio Deus (Cf. LE, n. 26).

Esta identificação com Deus se dá desde o início quando ao criar o homem e a mulher, o Criador os botou no seu jardim. Era este o sinal da familiaridade com Deus. E lá Deus os colocou “para que o cultivasse e guardasse” (Gn 2,15). Logo, “o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível” (Catecismo, n. 378).

Assim, o trabalho “define” o ser humano, mostra o seu ser, sua natureza como pessoa aberta ao mundo pela inteligência e pela liberdade, mas dentro de uma comunidade de pessoas. Deste modo, se revela o ser do homem como “imagem de Deus” (Cf. LE, n. 25).

O Documento de Medellín (1968) teve a preocupação de mostrar a primazia da dignidade do trabalho humano sobre o capital, a fim de que o ato de trabalhar seja mais do que uma atividade comum, mas tenha também um caráter celebrativo. E o Documento de Puebla (1979) assinala na mesma direção, dizendo que quem trabalha com reta consciência e amor da verdade e da justiça vê no seu trabalho uma doação de sua vida. Porque Cristo, “por sua solidariedade conosco, nos torna capazes de vivificar pelo amor nossa atividade e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico” (DP, n. 213).

Por isso, santificar o trabalho é dar glória a Deus por meio dele, como nos ensina o apóstolo Paulo: “Tudo o que vocês fizerem através de palavras ou ações, o façam em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai por meio dele” (Cl 3,17).

Para concluir, lembremo-nos que foi na carpintaria de José que Jesus tornou-se um trabalhador incansável. Sabemos que trabalhar é preciso, pois “quem não quer trabalhar, também não coma” (2Ts 3,10). Portanto, peçamos a São José, o operário exemplar, que nos abençoe e a seu filho Jesus que nos dê coragem para a nossa luta e ânimo em nosso trabalho, a partir do seu próprio testemunho: “O meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho” (Jo 5,17).

Oração pelos Trabalhadores

Ó Pai, nós vos louvamos porque vos revelastes como trabalhador, criando, conservando a criação, e chamando-nos para aperfeiçoá-la. Vosso Filho e nosso irmão Jesus também trabalhou com suas mãos na carpintaria de José, sentiu o cansaço do corpo e o suor do rosto. Nós vos agradecemos pelo trabalho que podemos realizar no campo e na cidade. Por ele ganhamos o pão para o nosso sustento e o de nossas famílias. Olhai, ó Pai, para todos que querem trabalhar e não podem. Olhai para os desempregados, os doentes, os idosos e os marginalizados. Nós vos pedimos por todos aqueles que criam possibilidades de trabalho. Não os deixeis cair na tentação da ganância, do lucro injusto e da exploração.

Fortalecei a solidariedade entre os trabalhadores e fazei que sejamos solidários com eles. Que nossos instrumentos de luta pela dignidade do trabalho ajudem a construir o bem de todos. Dai-nos compreender que nossos irmãos e irmãs trabalhadores mais sofridos formam o corpo crucificado do Senhor Jesus, que grita e quer ressuscitar na fraternidade e na liberdade. Lembre-nos sempre que pelo trabalho, ajudamos a construção do vosso Reino, que já começa aqui na terra. Tudo isso vos pedimos ó Pai, que trabalhais desde toda a eternidade, por vosso Filho e nosso irmão Trabalhador, e por intercessão de São José operário, na força do Espírito Santo. Amém.

 
©2007 '' Por Elke di Barros