sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

"NÃO USEM DE VIOLÊNCIA COM NINGUÉM E NÃO CALUNIEM" (Lc 3,14)


Pe. Paulo Nunes de Araujo


O mês de janeiro iniciou-se com o “Dia mundial da paz” e se encerra agora com o dia “Dia da não-violência”, moldurando significativamente todo o mês. São dois temas distintos, mas que se interligam porque trazem por dentro os anseios mais profundos de toda a humanidade, de ontem e de hoje, e que devem perpassar por todo o ano que recentemente se iniciou. Foi tomado o dia 30 porque nesta data, no ano de 1948, aos 78 anos de idade, morreu assassinado Mohandas Karamchand Gandhi, o “Mahatma” (do sânscrito: a “Grande Alma”) Gandhi, exímio líder pacifista indiano, fundador do movimento de não-violência naquele país. Ao morrer, suas últimas palavras foram: He Rama! (Oh, meu Deus!). A partir daí, a figura de Gandhi tornou-se modelo mundial de líder e apóstolo da não-violência.

Hoje, passados 60 anos da morte de Gandhi, nos perguntamos: Por que o mundo continua tão violento? Por que as pessoas assimilam tão automaticamente a violência? Por que a trama da violência é muito mais fecunda e ágil do que a luta pelo bem? Haveria um motivo oculto na história da humanidade para que tudo seja dessa forma?

A origem da violência é até hoje desconhecida, pois não dá para ser “medida” de modo convencional, e só é notada quando as pessoas se reúnem para dar vazão a esta surpreendente manifestação interior do ser humano. Para o Magistério da Igreja no Brasil, a situação é inquietante: “Preocupa-nos, como construtores da paz, que a vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em nosso país pelo crescimento da violência, que banaliza a vida (...). A violência se reveste de várias formas e tem vários agentes (...). Suas causas são múltiplas e interdependentes, expressões diversas da ausência de Deus no coração de muitas pessoas. (...) Diante de tudo isso, nós, cristãos, não podemos nos calar” (CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, 2008-2010. 46ª Assembléia geral. São Paulo: Paulinas, 2008, n.35). Se as causas da violência são diversas, as suas conseqüências também, e sempre trazem consigo dor, angústia, ferimentos, sejam físicos ou na alma, e até morte!

Segundo Paulo R. Ceccarelli, doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, “o aumento do ‘consumo da violência’ é fato notório: na mídia, o faturamento é garantido na exploração deste veio. Quase todas as emissoras de televisão têm programas onde a violência transborda: filmes, muitos deles à disposição de todos apresentados na ‘sessão da tarde’; programas onde acompanhamos, ao vivo, a polícia na perseguição de malfeitores; cenas reais de acidentes de carros, quedas de avião, incêndios e outras catástrofes. (...) Por outro lado, um breve passeio pela História da Humanidade nos ensina que a violência, em suas várias versões, sempre existiu: os conflitos, em maior ou melhor escala, são incontáveis; as rebeliões, as revoltas... Entretanto, o que caracteriza a violência nos dias de hoje é que ela vem sendo utilizada como uma forma, às vezes a única, de dar vazão à crescente insatisfação social, que pode começar na própria casa, com a qual o indivíduo vê-se cotidianamente confrontado” (CECCARELLI, Paulo Roberto. Violência e TV. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27 jan 2009).

Daí podemos concluir que há uma “escola da violência”. E aqui vale lembrar o ilustre líder africano e ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Ou ainda o abalizado líder estadunidense na defesa dos direitos humanos, Martin Luther King: “Uma das coisas importantes da não-violência é que não busca destruir a pessoa, mas transformá-la”. Aliás, esta é a pedagogia de Jesus: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons; porque toda árvore é conhecida pelos seus frutos” (Lc 6,43-44b). Conseqüentemente, “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, mas o homem mau tira do seu mau tesouro coisas más, porque a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc 6,45).

Para cumprir esse papel educativo e transformador, é necessário o firme empenho de todas as organizações e instituições, além das famílias como as primeiras responsáveis nesta incumbência. No caso da Igreja Católica, recordemos que a partir da sua preocupação com a realidade social do povo, na denúncia do pecado social e da promoção da justiça, à luz do Concílio Vaticano II e das Conferências de Medellín e de Puebla, ela lançou a Campanha da Fraternidade de 1993 com o lema: “Fraternidade sim, violência não”. E para este ano, à luz da Conferência de Aparecida, o lema será: “A paz é fruto da justiça”, visando debater sobre a segurança pública, além de contribuir para a promoção da “cultura de paz” na sociedade brasileira, sensibilizando a todos para o engajamento na construção de uma sociedade justa que garanta a segurança dos cidadãos.

Olhando em retrospectiva, os anos que se seguiram ao Vaticano II (1962-1965), caracterizaram-se pela mobilização popular e pela incidência de uma poderosa vontade de mudança social. Não bastavam apenas reformas. Buscava-se uma libertação da opressão histórica que as grandes maiorias vinham sofrendo. Muitos cristãos, impelidos pelo Evangelho de Jesus e pelo seu Reino, comprometeram-se com as realidades mais pobres, mais sofridas, num processo de conscientização e de prática que criava os primeiros sinais de uma sociedade nova possível. Como decorrência, sobre todos os que estavam empenhados nessa luta contra as amarras da opressão, abateu-se, aqui no Brasil, violenta repressão por parte do Estado de Segurança Nacional e de seus sequazes.

Porém, apesar de todos os contratempos, muitíssimos cristãos reforçavam a inspiração evangélica do compromisso pela libertação, inspirados na pratica de Jesus, o Libertador e Salvador. A vida toda de Jesus, morto e ressuscitado, fundou uma espiritualidade vigorosa de solidariedade e até de identificação com os sofredores e contra o seu sofrimento. O seguimento de Jesus firmava o comportamento do cristão na sociedade a ser urgentemente liberta e transformada.

É nessa mesma perspectiva da experiência de Jesus, o Senhor da vida e da liberdade, que nós devemos cogentemente desenvolver uma ação contra toda e qualquer forma de violência que destrói a vida e a dignidade dos filhos e filhas de Deus. Consideremos então a violência, procurando sempre ater-nos às suas causas e efeitos, buscando referências bíblicas sobre isso.

Para nós, cristãos, Jesus é o exemplo essencial, o paradigma por excelência que nos inspira ao compromisso com a não-violência. No entanto, vejo que atualmente a imagem de Jesus está tão despedaçada, muito distante da real figura do Jesus como nos é apresentada nos Evangelhos. Assim, para refazermos o perfil de Jesus, além de apelarmos para a Cristologia, precisamos recorrer justamente aos Evangelhos.


1. A questão essencial: Quem é Jesus?

Na busca do verdadeiro rosto de Jesus, as comunidades cristãs de hoje, devem se enraizar fundamentalmente na experiência pascal das comunidades cristãs do primeiro século. A profissão de fé dos primeiros cristãos, baseada na experiência que “Jesus é o Cristo”, que “Jesus é o Senhor”, deve ser reassumida no interior da nossa caminhada. Só então vamos compreender que as primeiras comunidades, através das suas experiências, foram proclamando a sua fé-testemunha em “Jesus (que) andou por toda parte, fazendo o bem (At 10,38).

Mas também os primeiros cristãos perceberam que a prática de Jesus acabou causando espanto e escândalo (no grego: eskandalizonto: Cf. Mt 13,57), expressão muito comum no Segundo Testamento (Cf. Mt 13,41; 16,23; 18,7; Rm 9,33; 14,13; 14,20; 1Cor 1,23; 8,9; 10,32; 2Cor 6,3; Gl 5,11; Fl 1,10; 1Pd 2,8; 1Jo 2,10). O motivo disso certamente foi a oposição de Jesus ao sistema de “pureza” da época, baseado na “lei do puro e impuro”, através da qual a classe dominante excluía os pobres dos meios de salvação. Jesus, com sua maneira de ser e de agir, cria novas esperanças de vida para as pessoas, possibilitando-as a voltarem ao convívio comunitário. Sem medo, ele toca o impuro: “Um leproso chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: ‘Se queres, tu tens o poder de me purificar’. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: ‘Eu quero, fique purificado’” (Mc 1,40-41). Jesus rompe a barreira do isolamento social imposto pela “lei do puro e impuro” e cria a "lei do amor" e da solidariedade. Além de se opor a esse sistema através da sua prática, Jesus trouxe a grande novidade: a oferta de salvação aos pobres e sofredores.

A prática de Jesus suscitou também oposição. O evangelista Marcos nos mostra que esta birra aconteceu desde o início: “Depois de saírem da sinagoga, os fariseus e os herodianos elaboraram um plano a fim de o fazer perecer (no grego: apolésosin: Mc 3,6). Mais adiante, a aversão a Jesus se radicaliza: “Os sumos sacerdotes e os doutores da Lei procuravam como prender Jesus com sutileza, para o matar (no grego: apoktéinosin: Mc 14,1b). Vemos aí que a morte de Jesus é o resultado de uma trama humana (Cf. Lc 6,11; 11,53-54; 13,31; 15,2; 16,14; 19,47; 20,19-20; 22,2.22.54; 23,14-15). Também hoje, a classe dominante e prepotente trama sutilmente a perseguição e a morte dos que lutam pela justiça e pela paz.

Em face desse cenário de violência, Jesus é “marcado para morrer”. O evangelista Marcos conservou três relatos da paixão proferidos pelo próprio Jesus (Cf. Mc 8,31; 9,31; 10,32-34). Com efeito, as autoridades judaicas (os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio), durante o interrogatório a Jesus, o acusaram de blasfemo diante de Pilatos: “Vocês ouviram a blasfêmia!” (Mc 14,64), de subversivo: “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar imposto ao imperador, e afirmando ser ele mesmo o Messias, o Rei” (Lc 23,2), de “agitador do povo” (Lc 23,14) de rebelde: “Ele está provocando revolta entre o povo com seu ensinamento” (Lc 23,5) e de facínora: “Se ele não fosse malfeitor, não o teríamos trazido até aqui” (Jo 18,30). Diante desses inquisidores malvados, a reação de Jesus foi calar-se: “Jesus, porém, não respondeu nada” (Lc 23,9). Porque ante a bestialidade, a mediocridade e a demência dos perversos, o silêncio é a melhor retórica, o mais eloqüente argumento. Por isso, esses líderes perversos foram denunciados como pessoas que “desagradam a Deus e são inimigos de todo mundo” (1Tes 2,15).

Da mesma forma, hoje em dia, a maioria dos líderes populares, antes de serem assassinados foram, igualmente a Jesus, “marcados para morrer” como por exemplo, o operário Santo Dias, o indígena Marçal Guarani, D. Oscar A. Romero y Galdamez, Pe. Josimo M. Tavares, Pe. Ezequiel Ramim, Irmã Dorothy Mae Stang, assassinada recentemente, em fevereiro de 2005, etc.. Ficou publicamente registrado que semanas antes, eles já sabiam que iam morrer. Eles não tinham luzes especiais, mas a análise da conjuntura do seu momento histórico.


2. A morte de Jesus como conseqüência da sua prática

A morte de Jesus foi causada pela sociedade estruturada na injustiça e na brutalidade. Diante dessa sociedade, Jesus foi visto como inimigo público, criminoso político. Por isso, acabaram matando Jesus violentamente (Cf. Mc 15,37; Mt 27,50; Lc 23,33.46; Jo 19,30b). Seguindo a trajetória da violência, a conclusão que daí tiramos é que Jesus estava ciente que iria morrer. E sabia disso não só porque era Deus, mas porque ele estava intensamente engajado no movimento popular do se tempo. Ou seja, a maneira de Jesus compreender a sua morte foi fruto de sua experiência, da sua inserção na luta do povo.

Por isso, inflamado pelo Espírito Santo, o apóstolo Pedro denuncia intrepidamente os “judeus devotos”, “caçoadores” do povo e assassinos de Jesus: “vocês, através dos ímpios, o mataram, pregando-o numa cruz” (At 2,23). Portanto, a morte de Jesus foi causal (teve uma causa) e não casual (obra do acaso), isto é, foi resultado de um conluio, de um cambalacho, conforme vimos antes. Então, os textos bíblicos supracitados, têm algo de histórico, porque estão diretamente inseridos na prática de Jesus, ao mesmo tempo em que traduzem uma compreensão teológica da comunidade.


3. A ressurreição de Jesus como aprovação de Deus Pai

Os violentos e assassinos não podem preponderar na brutalidade. Por isso, “Deus ressuscitou Jesus, libertando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominasse” (At 2,24). Ressuscitando Jesus, Deus demonstrou, por um lado, que aprovou a sua prática, que ele cumpriu a sua “vontade”; e, por outro lado, que reprovou e condenou a estrutura social que o matou. Daí, o ápice do quérigma, do profetismo esperançoso de Pedro: “Deus tornou Senhor e Cristo, aquele Jesus que vocês crucificaram” (At 2,36).

Assim, a partir da pessoa de Jesus e da sua mensagem, conforme consta nos Evangelhos, tiremos determinadas aplicações para a nossa vida. Para isso, tomemos alguns pressupostos fundamentais:


a) A violência e o seu percurso acelerado:

Atualmente notamos facilmente que o processo de violência é cada vez mais intenso. Mas muito tempo antes, esta ação já era verificada: “Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois, foram embora, e o deixaram quase morto” (Lc 10,30). Porém, além de ser mais aguda, hoje em dia a violência é muito mais sofisticada, crescente e seletiva, isto é, escolhem-se fria e calculadamente quem deve morrer (Cf. Mt 21,33-40; Mc 12,1-11; Mc 13,9-11; Lc 20,9-16b; Jo 8,4-5)


b) A violência no cotidiano da vida:

O mundo presente, segundo muitos psicólogos do social e sociólogos, está vivendo uma verdadeira “mentalidade da delinqüência”, verificada nos mais variados ambientes: na escola, na rua, nos estádios de futebol, nos clubes, no trabalho e até nas famílias. No passado, a literatura sapiencial já denunciava veementemente esta prática da violência: “Os injustos não dormem sem ter feito o mal; perdem o sono enquanto não fazem alguém tropeçar. Comem a maldade como pão e bebem o vinho da violência” (Pr 4,16-17). A violência está aí relacionada com coisas do dia a dia como comer e beber! Os estultos “comem” e “bebem”, isto é, vivem da violência!


c) A violência nas realidades racionalmente normais:

É muito estranho que para nós, seres humanos e inteligentes, a violência ocorre até nas situações objetivamente boas, nos casos mais insignificantes, como: na reclamação dos trabalhadores da vinha, que “ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Esses últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós...!” (Mt 20,11), isto só porque o patrão usou de justiça, igualando-os da mesma forma no que era de direito; na impertinência do irmão: “Quando chegou este teu filho, que devorou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho gordo!” (Lc 15,30); na medíocre reivindicação de Tiago e João pelo poder dominação: “Quando estiveres na glória, deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda” (Mc 10,37), o que acabou gerando “raiva” (Mc 10,41) entre os outros discípulos; na questão da inospitalidade: “Se vocês forem mal recebidos num lugar e o povo não escutar vocês, quando saírem sacudam a poeira dos pés como protesto contra eles” (Mc 6,11); na tendência doentia de depreciar e censurar as pessoas: “Não julguem, e vocês não serão julgados; não condenem e não serão condenados” (Lc 6,37).


d) A violência nas relações mais próximas:

A mentalidade da violência vai se alastrando até chegar à família, onde se estabelecem as relações mais curtas, pois na busca de viver decisivamente a proposta de Jesus baseada no direito e na justiça, em oposição aos que não querem, até as afinidades mais imediatas ficam comprometidas: “Daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas, e duas contra três. Ficarão divididos: o pai contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra” (Lc 12,49-53; 21,16-18).


e) A violência e os seus disfarces:

Nem sempre é fácil perceber os caminhos da violência, pois ela é ardilosa: “Vejam: a mão do homem que me atraiçoa está se servindo comigo nesta mesa” (Lc 22,21). Por isso mesmo, precisamos ficar espertos, para saber identificar quem são os reais malvados e violentos que, muitas vezes, estão disfarçados do nosso lado. Assim não correremos o risco de emitirmos um falso conceito a respeito de alguém como aconteceu em referência a Jesus: “eu tinha medo de ti, porque és um homem severo. Tomas o que não destes e colhes o que não semeaste” (Lc 19,21). Mas Jesus não é severo; nós não podemos nos enganar em relação a ele.

Aqui entra o papel da “mídia”. Na época, o “marketing de boca a boca” levou o povo a ficar dividido, a mudar de opinião e de posição quanto a Jesus (Cf. Jo 7,12). Por isso, uns o aprovaram: “é uma boa pessoa” e outros, ao contrário: “De jeito nenhum. É um homem que engana o povo”. E muitos, até sem saber o porquê, gratuitamente “odiaram-no sem motivo” (Jo 15,25). Conseqüentemente, quem está do lado de Jesus também é desprestigiado: “Esse povinho que não conhece a Lei, é maldito” (Jo 7,49) e chantageado: “até mesmo entre os chefes dos judeus houve quem acreditasse em Jesus. Mas, por causa dos fariseus, não se atreviam a confessar isso em público, para não serem expulsos da sinagoga” (Jo 12,42).


f) A violência e suas formas coercitivas:

Um dos artifícios da violência é a desestabilização emocional, como aconteceu com Jesus: “és um samaritano e está louco” (Jo 8,48); “ele tem um demônio! Está louco!” (Jo 10,20). Seguindo-se a isso, a violência passa pela ameaça e pela exclusão: após ter curado o leproso, “Jesus não podia entrar mais publicamente numa cidade; ele ficava fora, em lugares desertos” (Mc 1,45). Hoje em dia, ameaçam a honra, a família, o emprego, etc., exercendo toda forma de assédio moral, de discriminação, de constrangimento e de coação. No caso de um líder religioso, o ameaçam na questão da sexualidade, da afetividade, do envolvimento emocional com alguém, etc.. Mas diante disso, Jesus é o nosso animador: “Neste mundo, vocês terão aflições, mas tenham coragem; eu venci o mundo” (Jo 16,33; Cf. 17,15).


g) A violência e a transação econômica:

Outro traço marcante da violência é que ela geralmente tem uma origem monetária: “os fariseus, que são amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e caçoavam de Jesus” (Lc 16,14). Por isso, ela está quase sempre ligada à ambição, à ganância, às vantajosas negociatas. É assim que, movido pela avidez ao dinheiro, “Judas Iscariotes, foi aos chefes dos sacerdotes, e disse: ‘O que é que vocês me darão para eu entregar Jesus à vocês?’ Combinaram então trinta moedas de prata. E a partir desse momento, Judas procurava uma boa oportunidade para entregar Jesus” (Mt 26,14-16; Cf. Mc 14,10-11; Lc 22,3-6). Neste aspecto, Gandhi sabiamente dizia que “o que se obtém com violência, somente se pode manter com violência”, e que “há o suficiente no mundo para todas as necessidades humanas; não há o suficiente para a cobiça humana”. Daí que o autor da Carta aos Hebreus orienta: “Que a conduta de vocês não seja inspirada pelo amor ao dinheiro” (Hb 13,5a). Então, não há dúvidas que “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).


h) A violência e o encadeamento de forças:

Outra característica marcante da violência, muito comum hoje em dia, é a correlação de forças, mesmo as antagônicas, para engrossarem a fileira da perversidade. O evangelista Lucas, e somente ele, no relato da crucifixão de Jesus, registrou muito bem este aspecto, ao dizer que no dia da crucificação de Jesus “Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos (Lc 23,12). Isto não permite dizer que, em Jesus, os dois “se reconciliaram”, como sendo algo positivo. Lucas, na verdade, quis mostrar que a burguesia nacional (Pilatos) se uniu à burguesia internacional (Herodes), ou seja, os donos do poder na Palestina, uniram-se ao poder imperial romano para dominar o povo e, agora se uniram para matar Jesus.

Em vista do exposto, precisamos assumir algumas atitudes práticas para acabarmos com o crescente círculo da violência, pois ela é diabólica (do grego: diábolos: aquele que divide, que separa: Cf. Jo 6,70; 13,2), estrangula a comunidade e a sociedade, como advertiu o próprio Jesus: “Todo reino dividido em grupos que lutam entre si, será arruinado. E toda cidade ou família dividida em grupos que brigam entre si, não poderá durar” (Mt 12,25). E aí poderíamos perguntar com o poeta: “Que maldade você não cometeria, para acabar com a maldade? Se, no fim, pudesse mudar o mundo, o que consideraria você bom demais para fazer?” (Bertolt Brecht).

O eminente líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, cuja homenagem lhe é feita neste dia, fundou o movimento de não-violência baseado no verbo “himsa”, que em sânscrito, a língua clássica da Índia, significa: machucar, ferir, prejudicar, matar, etc.. A partir daí, Gandhi criou a “ahimsa”, que, segundo ele, “não é somente um estado negativo que consiste em não fazer o mal, mas também um estado positivo que consiste em amar, em fazer o bem a todos, inclusive a quem faz o mal”. Assim, ahimsa é o pensamento puro da Índia: a não-violência. A ahimsa foi inspirada pelo amor universal. É, portanto, a negação do verbo himsa, a renúncia a toda a intenção de morte ou dano ocasionado pela violência, se opondo a toda forma de egoísmo; é altruísmo e amor absoluto; é ação reta. A partir daí, Gandhi nos ensina que os homens de boa vontade aceitam a ahimsa. É impossível se iniciar uma nova ordem em nossa psique excluindo-se a doutrina da não-violência. A ahimsa deve ser cultivada nos lares seguindo-se a trilha do matrimônio perfeito. Só com a não-violência no pensamento, nas palavras e obras, torna-se possível reinar a felicidade nos lares. A ahimsa deve ser o fundamento do viver cotidiano no escritório, na fábrica, no campo, no lar, na escola, na rua, etc.. Devemos viver a doutrina da não-violência.

E o destacado Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz em 1964, assassinado em 1968 na luta em defesa dos direitos humanos, deixou-nos esta bela mensagem: “A maior de todas as virtudes é o amor. Neste mundo que repousa sobre a força, a tirania e a violência, tende como missão seguir o caminho do amor; descobrireis assim que o amor, desarmado, é a força mais poderosa do mundo”. E este seu “sonho” ainda continua vivo!

Nessa trilha de grandes personalidades, claro que não poderia deixar de destacar a figura contemporânea de D. Hélder Câmara, o “Profeta da Paz”, conhecido e respeitado mundialmente. No próximo dia 7, aniversário dos cem anos do seu nascimento, ele receberá homenagens em todo Brasil e em muitas partes do mundo, como reconhecimento de seu trabalho. D. Hélder foi um homem de intensa oração, de total serviço à Igreja, de profundo amor aos pobres e injustiçados, de vasta intelectualidade e bom orador, enfim, um eminente profeta de Deus. Por isso, foi o único brasileiro indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz.

Mas para nós que cremos em Jesus, o Mestre por excelência, é ele que nos dá o ensinamento maior. Diante do desafio da vida e da violência que a ameaça, precisamos tomar uma inteligente e firme decisão: fazer o bem ou fazer o mal? (Lc 6,9; Cf. Jo 5,16). E precisamos fazê-lo rápido! O apóstolo Paulo diz que “o tempo está abreviado” (1Cor 7,29). “Portanto, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos (Gl 6,10), ou seja, “não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos (Rm 12,17). Porque a prática do mal anula a nossa identidade e nos distancia de Jesus, como se vê: “Não sei de onde são vocês. Afastem-se de mim, todos vocês que praticam injustiça!” (Lc 13,27).

Dessa forma, diante de toda e qualquer forma de maldade ou violência, a grande e única saída é a prática do amor misericordioso, pois a misericórdia é o amor em abundância, “a boa medida, calcada, sacudida, transbordante” (Lc 6,38) e que ultrapassa a justiça. É exatamente aí que estaremos sendo sinal identificador do novo acontecendo: “Se vocês tiverem amor (egápe, do vergo grego: agapáo: amar) uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). Por isso, este mandamento novo amor se trata de uma ordem: “Assim como eu amei (egápsa) vocês, vocês devem se amar (agapáte) uns aos outros” (Jo 13,34b). Então, “façamos esforço para colocar mais virtude na fé, mais conhecimento na virtude, mais autodomínio no conhecimento, mais perseverança no autodomínio, mais piedade na perseverança, mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade” (2Pd 1,5-7). Aí, sim, nos tornamos “bons, e compassivos uns com os outros” (Ef 4,32).

À guisa de conclusão, enquanto a fraternidade não está realizada a contento e a violência ainda resiste, deixo esta denúncia tão antiga e tão nova: “Não há homem justo, não há um sequer. Não há homem sensato, não há quem busque a Deus. Todos se desviaram, e juntos se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é um túmulo aberto, com a língua planejam trapaças; em seus lábios há veneno de cobra. Sua boca está cheia de maldições e de amargor. Seus pés são velozes para derramar sangue; ruína e desgraça enchem seus caminhos. Não conhecem o caminho da paz, e não aprenderam a temer a Deus” (Rm 3,11-18). Por outro lado, deixo este anúncio esperançoso de “um novo céu e uma nova terra”, a fim de que o sonho de Deus e nosso, verdadeira utopia (do grego: uk-topós: o lugar-outro possível), torne-se, já neste mundo, uma realidade onde “nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Porque as coisas antigas desapareceram” (Ap 21,4). Marana tá!

sábado, 3 de janeiro de 2009

BÊNÇÃO DE POSSE DO PREFEITO MUNICIPAL

BÊNÇÃO DE POSSE DO PREFEITO E EQUIPE DE GOVERNO DO MUNICÍPIO DE MIRANDA, MS, BRASIL (1º/01/09, ÀS 19h30)


Por: Pe. Paulo Nunes de Araújo (delegado pelo pároco Pe. Altair R. Ferreira)


Texto bíblico: 1Rs 3,7-12


Exmo. Sr. Prefeito NEDER AFONSO DA COSTA VEDOVATO e distinta esposa, Sra. MARIA DO CARMO MASSUDA VEDOVATO,
Exmo. Sr. Vice-prefeito APARECIDO ROJO DUARTE,
Exmos. Srs. Vereadores, Sras. vereadoras e demais autoridades presentes,
Prezada equipe de governo e funcionários públicos deste município de Miranda,
Senhores e Senhoras.


Estamos ainda no clima do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Tempo Litúrgico do Natal nos insere na contemplação do grande feito de Deus nos últimos tempos: a encarnação do Verbo Eterno do Pai no seio virginal de Maria. A chegada do Menino Deus trouxe um novo brilho ao mundo, uma nova compreensão do mistério da vida e da realidade que nos circunda.

Jesus é a síntese do verdadeiro Amor. Não há nenhuma corrente de pensamento humano neste mundo capaz de esgotar este grande mistério. O amor não se explica com palavras, mas com a vida que se traduz em gestos de humildade, entrega, serviço, caridade e solidariedade para com os excluídos e pobres deste mundo. A passagem do Filho de Deus nesta vida foi a maneira pedagógica da qual Deus se serviu para restabelecer com a humanidade a nova e eterna Aliança. O significado desta missão divina está no seu próprio nome: JESUS (Deus Salva); e salva porque ama e ama porque é Deus.

Neste mundo tão marcado por fortes apelos e desejos, Jesus Cristo é a única resposta ao permanente anseio do coração humano. Ele é a verdade que liberta, que edifica e transforma. Para tal, precisamos acolher o Dom de Deus no mais profundo de nossa intimidade pessoal e deixar que esta força Divina ilumine tudo o que somos, tudo o que fazemos e tudo o que temos.

A missão do Filho de Deus não é outra senão a de nos salvar (Cf. Jo 3, 17). Fazendo-se um conosco (Cf. Mt 1,13b), deixou-nos seus ensinamentos. Jesus não fundou uma religião, mas a sua Igreja (Cf. Mt 16,17-18). Igreja é assembléia que se reúne e celebra a fé; é a guardiã da doutrina e dos ensinamentos do Senhor Jesus. No final do Século XIX, em face ao materialismo tecnológico e à mentalidade socialista nascente, a reflexão cristã abria caminho para o surgimento da Doutrina Social da Igreja que lançaria as bases para a compreensão cristã das atitudes sociais para com as comunidades e o exercício da atividade política democrática (Cf. LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum. Sobre a condição dos operários. Disponíel em: <clique aqui>. Acesso em 28 dez. 2008). Muitos ainda continuam com uma visão errada acerca da Igreja e da política. A Igreja não é partidária, mas não se exime da responsabilidade de opinar sobre os caminhos que conduzem à perfeição do tecido social.

Engana-se quem pensa que o exercício da política deve ocorrer distanciado dos aspectos da fé. Aos cristãos cabe a tarefa de humanizar o exercício legitimo da atividade política. Hoje, aqui nos encontramos nessa cerimônia de posse do Sr. Prefeito Neder Vedovato e do seu vice, Sr. Aparecido Rojo Duarte, juntamente com os vereadores e vereadoras eleitos e re-eleitos. Grande responsabilidade pesa sobre seus ombros.

A atividade política se fundamenta na "racionalidade" (CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000). Desde os antigos filósofos gregos a atividade de cuidar da pólis, a cidade, e zelar pelo seu bem comum teve mérito na racionalidade dos que meditaram e propuseram o progresso dos povos. Platão (séc. VI a.C.) na sua obra “A República”, Aristóteles (séc. VI a.C.) no seu ensaio “A Política” e Sto. Agostinho (séc. V d.C) na sua importante obra “A Cidade de Deus”, foram homens que se preocuparam com esse tema e lançaram as bases da reflexão sobre a atividade em favor do bem comum, a atividade Política.

A finalidade da pessoa humana sobre a terra é “fazer o bem e evitar o mal” (Aristóteles. Ética a Nicômaco). As formas de poder, nas suas esferas legislativa, executiva e judiciária, embora distintas, devem conjuntamente colaborar para a formação da pessoa na busca do bem. Enfim, todos que são investidos de autoridade não podem furtar-se à honra do dever e na colaboração com tal finalidade. “A autoridade só será exercida legitimamente se procurar o bem comum do grupo em questão e se, para atingi-lo, empregar meios moralmente lícitos” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1903). A conclusão que se tira disso é que não vale à pena agir contra o bem e a sã consciência.

Senhor prefeito, vereadores, vereadoras, secretários e secretárias, mantenham suas consciências tranqüilas no trato com o bem público. “O alheio chora por seu dono”, nos alerta o provérbio popular. Os mais pobres e sofredores serão nossos juizes no “Julgamento Final” (Cf. Mt 25,31-46). Naquele dia e hora decisivos, Jesus Cristo não será mais nosso advogado, mas se sentará no trono da Justiça Divina para nos julgar. Porque a prática do direito e da justiça serão os critérios fundamentais da condenação ou da salvação eternas.

Analisando os pontos principais das metas do Plano de Governo desta Coligação eleita para a gestão 2009-2012, podemos concluir, sem sombra de dúvidas que são propostas importantes para o nosso querido Município de Miranda. Penso que alguns aspectos precisam ser realmente perseguidos a todo custo: a saúde, a educação e a assistência social. Os dois poderes, executivo e legislativo, devem juntos trabalhar a favor do bem do Município e em plena liberdade de exercício e total responsabilidade. É o que esperamos da nova gestão que hoje se inicia.

“A liberdade humana é, como a vida, a coisa mais preciosa e valiosa do mundo” (Bartolomeu de Las Casas, 1474 a 1566, frade dominicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas, México, e grande defensor dos índios). E a pessoa humana não pode viver a vida e a verdadeira liberdade fora de Deus. Tudo deve começar com Ele e terminar n’Ele. Pois "a criatura sem o Criador esvai-se" (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 36). Esta é a consciência que deve ter o novo prefeito, os vereadores e todo o secretariado. Creio que todos estão com o coração cheio de boa vontade e interesse em dar ao nosso Município o melhor de si, a fim de que a vida e a liberdade das pessoas se realizem a contento. Não percam isto de vista. Não se dobrem à rotina do trivial do dia-a-dia, mas sejam criativos no zelo pelo bem público. O bom senso moral e humanitário deve estar acima do orgulho e da soberba que volta e meia reacende dentro de nós e corrompe a alma dos que transitam pelo caminho da atividade político-partidária.

O texto bíblico que ouvimos, apresentando a a oração de Salomão, mostra que o grande anseio do povo é ter uma autoridade realmente capaz de discernir e realizar a justiça. Para isso, a principal tarefa da boa autoridade é saber ouvir (do latim obaudire: obedecer, acolher, observar). Este é o requisito básico para que a justiça melhor se estabeleça. Certamente este é o anseio deste povo a quem os senhores irão governar, cientes de que “o governo é para os governados e não vice-versa” (LEÃO XIII. Ibidem), considerando que esta gestão se inicia exatamente neste Dia mundial da paz. Portanto, estejam convictos de que justiça e paz se abraçam” (Sl 85/84,11b) e que “o fruto da justiça será a paz (Is 32,17).

Para concluir, rezemos juntos a oração de Jesus, o Pai Nosso, na versão ecumênica:
Agora, peço a bênção de Deus sobre os senhres e senhoras aqui na minha presença, servindo-me deste trecho da “grande oração” composta pelo papa Clemente de Roma, Século I, a favor das autoridades políticas:
“Dá-lhes, Senhor, a saúde, a paz, a concórdia e a constância, para que exerçam com segurança a soberania que lhes destes. Tu, Senhor celeste, rei dos séculos, concede aos filhos dos homens glória, honra e poder sobre as coisas da terra. Dirige, Senhor, as decisões deles, conforme o que é bom e agradável a ti, para que, exercendo com paz, mansidão e piedade, o poder que lhes foi dado por ti, possam alcançar de ti a misericórdia. Amém!” (Carta aos Coríntios 61,1-2).
“O Senhor os abençoe e os guarde! O Senhor lhes mostre o seu rosto brilhante e tenha piedade de vós! O Senhor lhes mostre o seu rosto e lhes conceda a paz” (Nm 6,22-24). Amém!

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

"JUSTIÇA E PAZ SE ABRAÇAM" (Sl 85/84,11b)

Pe. Paulo Nunes de Araujo

“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que ele ama” (Lc 2,14). Com estas palavras proferidas pela grande multidão de anjos, na cena do nascimento de Jesus, ainda dentro deste tempo do Natal, propus-me a compor este escrito, a propósito do Dia mundial da paz. Este dia foi instituído pelo papa Paulo VI, em 1968, passando a ser comemorado a 1º de janeiro em toda a Igreja católica, com o objetivo de rezar para que a humanidade encontre o caminho da justiça e da paz, a fim de que todos os povos abandonem as armas e vivam como irmãos. No mesmo 1º de janeiro comemora-se também o Dia da Fraternidade Universal. Aqui no Brasil, esta data foi instituída pela lei n. 108, de 29/10/1935.

Na abordagem sobre “a realidade que nos interpela”, ao tratar da “situação sociopolítica” nas novas “Diretrizes Gerais”, o Magistério eclesial brasileiro faz ecoar, sem dúvida, o clamor de todo o povo que pede justiça e paz, diante de tanta violência, quando dizem: “Preocupa-nos, como construtores da paz, que a vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em nosso país pelo crescimento da violência, que banaliza a vida (...). A violência se reveste de várias formas e tem vários agentes (...). Suas causas são múltiplas e interdependentes, expressões diversas da ausência de Deus no coração de muitas pessoas” (Doc. da CNBB, 87, n. 35). Daí a pertinente conclamação: “Diante de tudo isso, nós, cristãos, não podemos nos calar” (Ibidem).

Muito positivo é que atualmente “em todo lugar, organizações estão falando ou começam a falar de ‘construir uma cultura da paz’ para combater violência e miséria. Governos, ONG’s, escolas, igrejas... Isto é bom. Mas não basta falar de paz; é preciso ver a proposta e a ideologia que está na sua base! (...) Pensar e agir local e globalmente à luz da paz que vem de Deus é viabilizar e construir processos culturais que colocam a vida digna, justa e prazerosa como prioridade. Participar disto é afirmar a nossa construção de identidade participante de projetos de Deus em nosso cotidiano” (REIMER, Ivoni Richter. Construir culturas de paz. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008). Para este meu texto, calcado na teologia, vou ater-me a cinco pontos, buscando sublinhar os elementos fundamentais que cada um deles nos oferece para a construção da paz.


1. Uma aliança de paz e para se fundar a paz

Se tomarmos por base os países do Oriente Médio, vamos perceber que é comum, ainda hoje, ouvir uma tradição que vem de muito antes, das raízes mesmas da vida e da cultura destes povos: a saudação shalom que, em hebraico, quer dizer paz. É a maneira que os israelitas têm de se saudar. O mesmo acontece com os árabes, que usam o termo salam, que tem igual significado: paz.

No mundo bíblico, paz é um conceito fundamental. Só na Bíblia hebraica (Primeiro Testamento) este termo aparece 239 vezes. A palavra hebraica "shalom" vem da raiz verbal "shalam", muito antiga e comum a todas as línguas semitas e expressa não só uma ausência de guerra, mas uma idéia de perfeição, de “estar completo”, de “estar perfeito”, de “estar terminado”, de “estar trasbordante”. Portanto, quem vive no shalom está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude. Daí que para o povo judeu, shalom indica tudo o que há de bom e abundante na vida: paz, tranqüilidade, serenidade, calma, concórdia; prosperidade, bem-estar, felicidade, sossego. Em síntese, shalom é um termo que exprime todo um ideal de felicidade na prosperidade individual e coletiva, na boa relação para com Deus e na harmonia social, gerando vida em todas as suas expressões.

Porém, a tradução do shalom hebraico por eirêne (paz) na Bíblia grega, enfraqueceu o seu significado, uma vez que eirêne remete a uma idéia de ataraxia (denotando ausência de movimento e conflito), o que não corresponde à paz bíblica. Em todo caso, destaca-se na Bíblia hebraica o significado da paz como fruto do cumprimento da vontade de Deus, como vemos: “Que (Deus) lhes abra o coração a sua Lei e seus mandamentos, e lhes conceda a paz” (2Mac 1,4). A paz é, aqui, apresentada como o resultado da observância da Toráh (Lei) e, por conseguinte, indica “bênção” e “salvação” em sentido profundamente teológico. Consequentemente podemos dizer que a paz refere-se à aliança que Deus fez com a humanidade. Trata-se de uma aliança de paz para realizar a paz (Cf. Nm 25,12; Is 26,12; 55,12; Ez 34,25).


2. Desde a origem, Deus nos criou para a harmonia e a paz

No livro do Gênesis temos a narrativa do “jardim de Éden (lugar das delícias, dos prazeres: Cf. Gn 2,8.15; 3,23.24). Éden sinalizava um modo de vida marcado pela harmonia das pessoas entre si, com a natureza e com Deus. Mas a ganância e a ambição do ser humano destruíram essa condição. Daí as narrativas da entrada do mal e da violência no mundo, simbolizado pela serpente: o fratricídio de Caim (Cf. Gn 4,1-16), o dilúvio (Cf. Gn 6,5—9,17), a torre de babel, ou melhor: “torre de balal ("confundir": Cf. Gn 11,1-10).

Mas o autor do Gênesis mostra que Deus buscou reverter a situação de violência, a partir de algumas decisivas alternativas: o nascimento de outro filho de Adão, Set (em hebraico: Shêt, de shat ("ele concedeu": Cf. Gn 4,25-26); o nascimento de Noé (em hebraico noah, provavelmente de naham: consolar, confortar, aliviar, acalmar, tranqüilizar: Cf. Gn 5,28-29), porque foi através dele que Deus restabelece aliança com o povo na cena da pomba que, após o dilúvio, “trazia, no bico, um ramo novo de oliveira” (Gn 8,6-11), indicando segurança, tranqüilidade e paz. Daí a simbologia da “pomba da paz”; a figura de Abraão (em hebraico Av’raham, de Av’hamôn: "pai de multidão": Cf. Gn 17,1-8).


3. Profetas: denunciadores da violência e anunciadores da paz

Diante do caos, Deus suscita profetas, homens e mulheres, para o anúncio, a denúncia e apelo à conversão. A verdadeira profecia desmascara a falsa religião que levava os poderosos a acharem que estavam em paz com Deus. A exploração econômica é uma espécie de assassinato (Cf. Am 8,4-6). Contra o falso culto dos poderosos, Deus fala através do profeta: “É o amor (no hebraico hessed: solidariedade, lealdade, compromisso, bondade) que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus (no hebraico dá’ah: co-nascer, mostrar na prática aquilo que Deus é) mais do que holocaustos” (Os 6,6; Cf. Sir 34,18-22). Porque o único sacrifício válido é a conversão sincera que se traduz na prática do verdadeiro amor.

Os profetas Isaías e Miquéias, por exemplo, falam de um novo tempo, uma vida nova. Jerusalém será um lugar para onde os povos trilharão e viverão em paz, com cada um tendo o suficiente para viver (Cf. Is 2,2-5; Mq 4,1-4). Trata-se de uma paz verdadeira! Porque não adianta dizer: “‘Paz! Paz!’ quando não há paz” (Jr 6,14). De fato, “o fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça constituirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,17). Por isso, para Isaías, o anúncio da paz é autêntico evangelho (boa notícia) aos exilados: “como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz (Is 52,7).

Além dos profetas, também os salmistas convidam o povo a suplicar a verdadeira paz: “Pedi a paz para Jerusalém” (Sl 122/121,6a); “Evita o mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a” (Sl 34/33,15). É uma paz que só Deus dá: “Ouvirei o que Javé Deus diz, porque ele fala de paz”; “Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam” (Sl 85/84,9.11). Assim, a dádiva de Deus e a nossa resposta-compromisso andam de mãos dadas, abraçadas, gozando de felicidade. Quando uma larga da outra, instala-se o caos, a injustiça, toda forma de violência, perda de sentido, portanto, ausência de shalom!


4. Jesus nos comunica e propõe a paz

Os ensinamentos do Primeiro e do Segundo Testamentos podem contribuir para uma reflexão sobre a possibilidade da paz no mundo de hoje se se tiver diante dos olhos as exigências dos profetas. O shalom, na perspectiva bíblica, só é possível numa sociedade que vive de acordo com as exigências divinas postuladas na Toráh (Lei). Estas exigências foram assumidas na pregação de Jesus Cristo e a comunidade cristã, desde os primeiros tempos, as conservou nos evangelhos e nos outros escritos do Segundo Testamento. Uma vida em conformidade com as exigências divinas possibilita criar na sociedade um procedimento ético de respeito aos direitos do próximo, os direitos humanos, que ajudam a viver a justiça e, portanto, a construir a paz. Desse modo, na teologia do Primeiro Testamento é impossível construir uma sociedade justa sem o respeito à vontade de Deus expressa em seus mandamentos.

Segundo o evangelista Mateus, Jesus começou a sua vida pública com um discurso programático que é iniciado com o chamado “sermão da montanha”, onde se destacam oito “bem-aventuranças”, entre as quais, “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Dentro do contexto das bem-aventuranças, portanto, para participar do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo, é necessário que o discípulo seja um construtor da paz, e trabalhe para que a paz reine efetivamente na comunidade.

O evangelista Lucas abre o seu evangelho protagonizando a figura de Maria, a Mãe de Jesus, como porta-voz de todos os sofredores desejosos de um mundo novo, cheio de paz. No Magnificat (Cf. Lc 1,46-55), por exemplo, Maria exulta de alegria porque Deus “olhou para a humilhação (do grego: tapéinosin: Lc 1,48a) não só dela, mas de todos os pobres e marginalizados da época.

Portanto, no Magnificat há um nítido contraste entre o sim exultante da comprovação de que Deus interveio decisivamente na história, libertando os humilhados das mãos dos opressores, ao anunciar o Salvador: “Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,48b-49a) e o não de Deus que ressoa da boca de Maria às forças do anti-Reino que ameaçam destruir seu Projeto salvífico. É o não ao mal social da injustiça; o não ao pecado da alienação, que se omite diante do sofrimento dos outros; o não ao mal teológico do pecado.

E nas “narrativas da infância” de Jesus, Lucas o apresenta como o portador da paz ao mundo por excelência, como vemos nas palavras proferidas pela grande multidão de anjos: “Glória a Deus nas alturas e paz (no grego: eirêne) na terra aos homens que ele ama” (Lc 2,14). Aliás, Lucas é o evangelista que mais utiliza o termo grego eirêne (paz), uma vez que este termo aparece 92 vezes no Segundo Testamento. Só nos evangelhos, esta palavra ocorre 25 vezes: 4 em Mateus, 1 em Marcos, 6 em João e 14 em Lucas. Nesta proclamação dos anjos, o evangelista expõe que no nascimento de Jesus a glória de Deus e a paz, em seu significado pleno de vida e salvação, de ausência de conflitos e de vitória sobre o mal e a injustiça, é oferecida a todos os seres humanos.

Este bom anúncio aos mais pequenos (os pastores) “revela, aliado à figura do menino, que a salvação agora oferecida não é apanágio dos grandes, que sempre se apoderam dos melhores bens da humanidade. A partir de agora, os bens messiânicos prometidos estarão acessíveis a todos, desde os mais pequenos aos maiores. Em contraste com a pequenez dos pastores, o coro dos anjos representa a universalidade cósmica do anúncio. Não é apenas aos pequenos e grandes de Israel, mas a todo o universo que o nascimento de Jesus diz respeito. Além disso, os anjos representam o mundo de Deus, que se torna presente entre os homens. No sinal pacífico e aparentemente impotente do menino revela-se a totalidade do poder salvador de Deus que os anjos anunciam” (CARVALHO, José Ornelas. A utopia da paz na Bíblia, II. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008). Assim, a glória de Deus revela-se na paz do ser humano, na sua felicidade plena. Aqui vale lembrar Santo Irineu (130-202.): “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem consiste em ver a Deus. Pois se a manifestação de Deus que é feita por meio da criação, permite a vida de todos os seres vivos na Terra, muito mais a revelação do Pai que nos é comunicada pelo Verbo, comunica a vida àqueles que amam a Deus” (Adversus Haereses IV, 20, 7).

A paz que Jesus propõe tem a ver com a vida abundante. E a paz enquanto plenitude dos bens messiânicos passa pela salvação integral da pessoa e manifesta-se na palavra e nos gestos de Jesus. Por duas vezes, Lucas associa expressamente a ação libertadora de Jesus à transmissão da paz: àquela “certa mulher, conhecida na cidade como pecadora” e àquela “mulher que sofria de hemorragia havia doze anos”. A cada uma delas Jesus diz: “Sua fé salvou você. Vá em paz! (Lc 7,50; 8,48). “Para estas mulheres, o contato com Jesus significou paz, como regeneração total do seu ser, a começar pelo restabelecimento da saúde e pelo dom do perdão que desaliena e restabelece a dignidade da pessoa. As curas físicas por ele operadas, são o primeiro sinal da plenitude da regeneração da vida, o começo da paz. Por isso a fé, entendida como adesão à sua pessoa, constitui o fundamento da paz, pois é ela que torna possível a comunhão com o Senhor da vida” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Seguindo o exemplo de Jesus, o apóstolo Paulo nos mostra que a paz está sempre ligada à graça, ela provém da graça de Deus que recebemos em Jesus Cristo, com podemos ver: “Que a paz de Cristo reine coração de vocês. Para esta paz vocês foram chamados, como membros de um mesmo corpo” (Cl 3,15). Paulo nos mostra ainda que a paz é um dos frutos do Espírito Santo quando diz que “o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, fé, mansidão e domínio de si” (Gl 5,22); que “o Reino de Deus não é questão de comida ou bebida: é justiça, paz, alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Por isso, o apóstolo pode afirmar que “justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5,1), porque realmente “Cristo é a nossa paz” (Ef 2,14a).

O apostolo Tiago, por sua vez, seguindo a perspectiva profética do passado, nos mostra a íntima ligação entre justiça e paz, quando diz intrepidamente que “um fruto de justiça é semeado na paz para aqueles que trabalham pela paz” (Tg 3,18). Entende-se aí justiça como a conduta humana justa como resposta à vontade de Deus, uma conduta de acordo com as exigências de Deus. Quem constrói a paz está semeando os frutos da justiça, no sentido de obediência às exigências divinas.

Por conseqüência, diante de um mundo tão dividido, injusto, violento, Jesus veio nos trazer a verdadeira paz: “Deixo para vocês a paz, eu lhes dou a minha paz. A paz que eu dou para vocês não é a paz que o mundo dá” (Jo 14,27). Por aí vemos que este grande desejo de todos os tempos e em todas as culturas, atinge culminância em Jesus, quando ele diz reiteradas vezes: “A paz esteja convosco” (Lc 24,36; Jo 20,21.26d), e recomenda esta saudação aos seus discípulos missionários: “A paz esteja nesta casa!” (Lc 10,5). Portanto, esta é a grande saudação bíblica, muito comum aos apóstolos ao escreverem suas cartas às comunidades, como por exemplo: “Aos irmãos a paz, o amor e a fé” (Ef 6,23); “Que a graça e a paz de Deus...” (Fl 1,2); “A vocês, graça e paz” (1Ts 1,1; 2Ts 1,2); “Graça, misericórdia e paz” (1Tm 1,2); “Que haja abundância de graça e paz” (2Pd 1,2); “Que a paz esteja com você” (3Jo v. 15); “Que a misericórdia, a paz e o amor sejam concedidos em abundância a vocês” (Jd v. 2); “Desejo a vocês a graça e a paz” (Ap. 1,4); etc.. Isto porque toda pessoa que se dispõe a seguir Jesus, deve “viver em paz com todos” (Rm 12,17; Cf. 1Cor 13,11; 1Ts 5,13), tanto nas palavras quanto nos exemplos, pois quem vivencia a paz de Deus deve tornar-se alguém que faz paz (Mt 5,9; Tg 3,18).

Mas é preciso ter claro que “a paz não se identifica simplesmente com o calar-se dos canhões ou a ausência de conflitos, mas é um projeto dinâmico e construtivo, destinado a possibilitar o desenvolvimento de pessoas e sociedades livres, dignas, justas e felizes. Um projeto destes exige disponibilidade, desapego e esforço, que não se compadecem com atitudes ambíguas de pseudoconciliação de valores inconciliáveis. A violência evangélica tem início na própria pessoa, pois a verdadeira paz é incompatível com o ‘deixa-me em paz!’, dos que não querem ser incomodados no seu egoísmo, comodismo ou tendências adversas à edificação do Reino. Quem não for capaz de se inquietar com os problemas da humanidade, quem nunca empreender nada para não ter problemas, refugiando-se na ‘sua paz’, nunca entenderá a paz do evangelho” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

No entanto, sabemos que o Projeto de Jesus, propondo a transformação das pessoas e de toda a sociedade, não é tão pacífico assim, como nos adverte o próprio Jesus: “Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos” (Mt 10,16). O conflito muitas vezes é inevitável a todos os níveis, pois “frequentemente os construtores da paz são apelidados de rebeldes, de agitadores, de perturbadores da ordem pública, por aqueles que, para defender os seus interesses e o seu poder, instalam sistemas injustos e opressores. Não raro, esses sistemas de poder revestem-se de uma aura de sacralidade e encontram, nos meios religiosos, muita gente que lhes dá apoio e que condena, em nome de Deus, qualquer alteração dos sistemas, pois as ditaduras procuram, com freqüência, ser generosas com as instituições religiosas, desde que estas se mantenham cegas às injustiças e submissas àqueles que as praticam” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Nesse horizonte de compreensão, o evangelho é uma forte denúncia da inautenticidade e da tentativa de manipulação da paz. Daí os conflitos e divisões até nas relações mais imediatas: “o irmão entregará à morte o próprio irmão; o pai entregará o filho; os filhos se levantarão contra seus pais, e os matarão” (Mt 10,21; Mc 13,12-13). Isto aconteceu com o próprio Jesus: ele foi rejeitado (Cf. Mt 13,57-58; Mc 6,4-6), foi expulso (Cf. Lc 4,28-29) e marcado para morrer (Cf. Mt 12,14). E movidos por uma reação violenta, muitos até matarão pensando estar cumprindo um ato religioso: “expulsarão vocês das sinagogas. E vai chegar a hora em que alguém, ao matar vocês, pensará que está oferecendo um sacrifício a Deus” (Jo 16,2). Neste ponto, o martírio chega a sua expressão mais radical.

Em face ao exposto, Jesus nos apontou alguns caminhos para construção da paz:

a) A solidariedade (Cf. Mc 2,1-12). Nesta passagem, Jesus nos dá três lições: primeira, que as s doenças (mal visível) não são castigo por causa dos pecados (mal invisível); segunda, que as causas da paralisia e da dependência do povo não vêm de Deus; terceira, que a fé solidária dos “quatro homens” que “transportavam o paralítico”, aliada à criatividade que os levou a “abrir o teto”, ajuda a superar os males que afligem de morte o povo. Vê-se que o paralítico jazia (estava como morto) no seu leito. Agora ele pode levantar-se e caminhar com suas próprias pernas, torna-se agente da sua própria vida.

E trata-se de uma solidariedade constante, aqui, agora e depois, indicando uma prática de relação curta e de relação longa, como se vê na “parábola do bom samaritano” (Cf. Lc 10,30-37), motivada pela pergunta de um homem “conhecedor de leis”: “Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna? (Lc 10,25). Esse homem até sabia como, a partir da Toráh (Lei). Mas isto não basta, é preciso sair de si, ser misericordioso. Ele só queria saber quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Porém, Jesus quer que ele compreenda: “Qual dos três fez-se próximo do homem?” (Lc 10,36), ao que o próprio “conhecedor de leis” responde: Aquele que fez misericórdia para com ele” (Lc 10,37a). Com isso, Jesus ensinou a boa medida para a conquista da paz e da vida eterna. E trata-se de um imperativo: e faça a mesma coisa” (Lc 10,37b) e viverás (Lc 10,28).

A prática da solidariedade e da misericórdia sempre foram desafios para a humanidade construir a paz, principalmente hoje em dia diante de tanta pobreza e miséria, infelizmente com o alarmante “aumento do fosso entre ricos e pobres” (BENTO XVI. Combater a pobreza, construir a paz. Mensagem para a celebração do dia mundial da paz, n. 07, 1°/01/09. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez 2008), segundo dados mais recentes demonstram: “em 1990, 32% do mundo desenvolvido vivia com menos de um dólar por dia; em 2004, esse número era de 19,2%. A meta para 2015 é de 16%. Diminuir a pobreza à metade até 2015 é o compromisso dos países da ONU, através dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que determina metas na luta contra a miséria, doenças e analfabetismo” (OPINIÃO E NOTÍCIA. Diminui a pobreza no mundo. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008).

E sabe-se que, como empecilho à paz, “a pobreza encontra-se frequentemente entre os fatores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. (...) Pois muitas pessoas, mais ainda, populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza” (Bento XVI. Ibidem, n. 01). Dentro desse quadro da pobreza, grande preocupação incide sobre os recém-nascidos, porque “quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças” (Bento XV. Ibidem, n. 5). Daí a forte interpelação: “os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências com uma corajosa autocrítica” (Bento XV. Ibidem, n. 6). Certamente só a conversão da injustiça para a justiça, propiciará a efetivação da paz.

b) O perdão e a reconciliação. Em face da pergunta de Pedro: “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?”, Jesus respondeu-lhe: “Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,21-22: alusão ao Ano Jubilar: Cf. Lv 25). Porque o perdão não é uma questão de quantidade legal, mas de qualidade, de genuinidade, uma questão de justiça.

No seu grande discurso conhecido como “sermão da montanha” (Cf. Mt 5—7), Jesus ensina aos bem-aventurados que o perdão é fundamental: “se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que seu irmão tem alguma coisa contra você, deixa a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão, depois, volte para apresentar a oferta” (Mt 5,23-24). Porque realmente não tem sentido um culto que desprestigia o perdão. Mas é preciso “perdoar de coração ao irmão” (Mt 18,35). Assim, a reconciliação fraterna é condição para o bom relacionamento com Deus. E isto é um dom que Deus dispensa a cada um de nós, gratuitamente, para exercitá-lo cotidianamente: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma nova realidade apareceu. Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,17-18). Fazendo assim, a comunidade assume a característica fundamental de Jesus que “não veio para chamar justos, mas pecadores” (Mc 2,17).


c) O mandamento do amor. Jesus Cristo, no tocante aos mandamentos, seguindo os doutores da Lei de seu tempo, resumiu todo o emaranhado da Lei e de suas interpretações rabínicas, em dois preceitos, que resumem toda a Lei (Cf. Mc 12,28-34): “Ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com toda a sua força” (Dt 6,5) e “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19,18b). O ser humano de hoje, que quiser verdadeiramente trabalhar na construção da paz, deverá levar a sério e viver estas exigências éticas.

E Jesus vai mais além, fazendo-se o novo e definitivo legislador: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12). É esse amor sinalizador do amor de Jesus que dá identidade à comunidade, à Igreja: “se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). A conseqüência lógica e evidente disso é a paz.


5. Retrato das comunidades cristãs do primeiro século

O Segundo Testamento recolheu e conservou alguns traços marcantes das comunidades do primeiro século, como vemos neste texto paradigmático: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles necessitado algum. Distribuía-se então, a cada um, segundo a sua necessidade” (At 4,32.34a.35b). Esta unanimidade (uma só alma) na partilha era levada a sério: “quanto à coleta em favor dos irmãos, façam como eu ordenei” (1Cor 16,1). Exemplo igual a este, seguiram as comunidades cristãs da Macedônia: “Em meio às muitas tribulações que puseram à prova essas igrejas, a grande alegria e a extrema pobreza delas transbordaram em riquezas de generosidade” (2Cor 8,2).

Esta solidariedade comunitária não se prendia só a uma prática interna, mas se abria para o socorro de outros necessitados, com notamos: “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27). Isto era uma recomendação fundamental, que caracterizava a verdadeira comunidade cristã: “Eles (Tiago, Pedro e João) pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado” (Gl 2,10). Mas além do cuidado desses desamparados, havia também uma séria preocupação com o direito dos trabalhadores em relação ao fruto do seu trabalho e com a sobrevivência dos mais fracos (Cf. Tg 5,1-6).

Portanto, para os primeiros cristãos, a paz não era uma questão meramente intimista, subjetivista, mas uma realidade que sinalizava o tempo novo acontecendo, e que devia se expandir no dia a dia do povo. Por isso, o apóstolo Paulo chamou a mensagem cristã de “evangelho da paz” (Ef 6,15).

Para nós, hoje, na luta pela realização da paz, fica o intrépido apelo papal: “a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo, no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir ao seu socorro. De fato, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma ‘combater a pobreza é construir a paz’” (Bento XV. Ibidem, n. 15).


Conclusão

Nesta abordagem, procurei mostrar que, na Bíblia, a paz é, antes de mais, o dom de Deus que permite a realização plena da pessoa e da sociedade, abrindo os horizontes da felicidade, para além daquilo que as forças humanas conseguem realizar. No entanto, “sem deixar de ser dom de Deus, é também um projeto de construção humana, pois não existe em abstrato, mas reside, ou não, nas pessoas e na sociedade. Dado que não se equaciona simplesmente com a ausência de guerra, a paz exige mais do que pacifismo abstencionista e resignação, como forma de evitar conflitos. Ela requer tanto o conflito e a coragem da denúncia, como o amor e a dedicação na construção da vida, da fraternidade, da justiça, da dignidade e da esperança” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Arrematando este artigo, podemos definitivamente afirmar com o profeta que “o fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça constituirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,17). Por conseguinte, “para os maus não há paz” (Is 48,22). E neste dia que a Igreja também celebra solenemente Maria, Mãe de Deus, fiquemos com sua bênção e proteção, ela que “é presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos” (DA, n. 524), e que “como mãe de tantos, fortalece os vínculos fraternos entre todos” (DA, n. 267) e lança seu “urgente apelo à paz”. Desse modo, só posso finalizar este artigo desejando Shalom a todos.

 
©2007 '' Por Elke di Barros