Pe. Paulo Nunes de Araujo
O mês de janeiro iniciou-se com o “Dia mundial da paz” e se encerra hoje com o “Dia da não-violência”, emoldurando significativamente todo o mês. São dois temas distintos, mas se conexam porque trazem por dentro os anseios mais profundos de toda a humanidade, de todas as épocas, e que devem perpassar por todo o ano que recém começou. Foi tomado o dia 30 porque nesta data, no ano de 1948, aos 78 anos de idade, morreu assassinado Mohandas Karamchand Gandhi, o "Mahatma" (do sânscrito: a “Grande Alma”) Gandhi, ilustre líder pacifista indiano, fundador do movimento de não-violência na Índia. Ao morrer, suas últimas palavras foram: “He Rama!” (“Oh, meu Deus!”). A partir daí, a figura de Gandhi tornou-se modelo mundial de líder e apóstolo da não-violência.
Hoje, passados 62 anos da morte de Gandhi, nos perguntamos: Por que o mundo continua tão violento? Por que as pessoas assimilam tão espontânea e facilmente a violência? Por que a trama da violência é muito mais fecunda e ágil do que a luta pelo bem?
A origem da violência até hoje é desconhecida, pois não dá para ser “medida” de modo convencional, e só é notada quando as pessoas se reúnem para dar vazão a esta surpreendente manifestação interior do ser humano. Para o Magistério da Igreja no Brasil, a situação é inquietante: “Preocupa-nos, como construtores da paz, que a vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em nosso país pelo crescimento da violência, que banaliza a vida (...). A violência se reveste de várias formas e tem vários agentes (...). Suas causas são múltiplas e interdependentes, expressões diversas da ausência de Deus no coração de muitas pessoas. (...) Diante de tudo isso, nós, cristãos, não podemos nos calar” (CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, 2008-2010. 46ª Assembléia geral. São Paulo: Paulinas, 2008, 87, n.35). Se as causas da violência são diversas, as suas conseqüências também o são, e sempre trazem consigo dor, angústia, ferimentos, sejam físicos ou na alma, e até morte!
Segundo Paulo Roberto Ceccarelli, doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, “o aumento do ‘consumo da violência’ é fato notório: na mídia, o faturamento é garantido na exploração deste veio. Quase todas as emissoras de televisão têm programas onde a violência transborda: filmes, muitos deles à disposição de todos apresentados na ‘sessão da tarde’; programas onde acompanhamos, ao vivo, a polícia na perseguição de malfeitores; cenas reais de acidentes de carros, quedas de avião, incêndios e outras catástrofes. (...) Por outro lado, um breve passeio pela História da Humanidade nos ensina que a violência, em suas várias versões, sempre existiu: os conflitos, em maior ou melhor escala, são incontáveis; as rebeliões, as revoltas; enforcavam-se os criminosos em praça públicas, e tantas outras coisas. Entretanto, o que caracteriza a violência nos dias de hoje é que ela vem sendo utilizada como uma forma, às vezes a única, de dar vazão à crescente insatisfação social, que pode começar na própria casa, com a qual o indivíduo vê-se cotidianamente confrontado. (...) Cenas que evocam violência, agressividade, aquelas que sugerem relações baseadas na desconfiança, na falta de solidariedade e outras tantas, podem incentivar comportamentos e propor ‘valores éticos’ divergentes daqueles necessários para a construção de uma estrutura social calcada no respeito e no direito do cidadão.” (Violência e TV. Disponível em: <clique aqui>
Face a essa triste realidade, só podemos admitir que existe na sociedade uma “escola da violência”. Comumente as pessoas são estimuladas a isso. Além dos conteúdos que a "mídia" transmite, o uso escancarado de mini-câmera digital, celular com câmera, chaveiro espião, caneta espiã, micro-filmadora, etc., tão acessíveis no mercado de eletroeletrônicos acaba estendendo o percurso da violência. Porque esse material na mão de gente irresponsável, chantagista e vingativa é um perigo!
Assim sendo, percebemos que hoje em dia a violência está presente intolerantemente em todos os cantos, nos mais variados ambientes: na família (violência doméstica), na escola, nos locais de trabalho, nos “trotes” de calouros universitários, no trânsito, nos estádios de futebol, entre vizinhos, nos condomínios, na política, etc. E o circulo da violência aumenta a cada dia, e já não se prende à faixa etária dos jovens e adultos. Hoje, os noticiários dão notícias de delinqüências e homicídios cometidos por crianças de ate oito anos de idade.
Além dessas formas de violência, fala-se atualmente numa outra muito aterrorizante, o chamado “bullying”. A palavra “bully” é de origem inglesa e significa “valentão”. Para o cientista norueguês Dan Owelus, “o bullying se caracteriza por ser algo agressivo e negativo, executado repetidamente e que ocorre quando há um desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas” (Bullying. Disponível em: <clique aqui>
Assim sendo, esse comportamento pode ocorrer em todos e quaisquer contextos nos quais os seres humanos interagem e convivem, como: escolas (usando apelidos negativos e expressões pejorativas) e universidades (“trotes” humilhantes de calouros), no trabalho (atingindo a integridade e a confiança da vítima) ou até mesmo entre vizinhos (atitudes propositais e sistemáticas atrapalhando e incomodando os outros).
Segundo pesquisadores, os praticantes do “bullying”, geralmente são indivíduos que têm pouca empatia. Freqüentemente, pertencem a famílias desestruturadas, nas quais há pouco relacionamento afetivo entre seus membros. Estudiosos de vários países afirmam que há grande possibilidade desses autores virem a ser, mais tarde, delinqüentes ou criminosos. As vítimas são pessoas ou grupos que sofrem as conseqüências dos comportamentos de outros e que não dispõem de recursos, status ou habilidade para reagir ou fazer cessar os atos danosos contra si. Esses poderão crescer com sentimentos negativos, especialmente com baixa auto-estima, tornando-se adultos com sérios problemas de relacionamento e, em casos extremos, alguns poderão tentar ou a cometer suicídio. E quanto as testemunhas, na maioria são os próprios alunos, que convivem com a violência e se calam em razão do temor de serem as “próximas vítimas”. Há enormes possibilidades de se tornarem pessoas tensas, inseguras e temerosas. (Cf. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA MULTIPROFISSIONAL DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E À ADOLESCENCIA (ABRAPIA). Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 26 jan 2010).
Ainda dentro desse âmbito da violência, fala-se muito também do “cyberbullying”. Tristemente, “a prática do cyberbullying, ou intimidação virtual, representa um dos maiores riscos da internet para 16% dos jovens brasileiros conectados à rede. Isso é o que mostra uma pesquisa realizada no início de fevereiro deste ano pela Safernet, ONG de defesa dos direitos humanos na internet (...). Por conta dessa prática agressiva, o Dia da Internet Segura, realizado em 55 países no dia 9/02 deste ano, teve o tema “pense antes de postar”, com um alerta sobre os perigos das informações que são divulgadas de forma irresponsável na web” (DIA DA INTERNET SEGURA. Cyberbullying preocupa 16% dos internautas jovens no Brasil, 10/02/2010. Disponível em: <clique aqui>
Conforme notáveis juristas e advogados, os atos de “bullying” configuram atos ilícitos, exatamente por desrespeitarem princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana. Porque “a base de todo o direito, a base de toda a sociedade é o ser humano. Sem nós, não há indústria, não há comércio, não há Judiciário, não há nada. E o maior bem do ser humano é a sua integridade física, emocional, estética, psicológica e moral. Se violada, essa agressão deve ser punida. A vida moderna só concebe essa punição através de uma indenização. E essa indenização tem que ser em valores que façam o infrator refletir e não repetir o erro” (VALEIXO NETO – ADVOCACIA DE INDENIZAÇÃO. Sobre a Valeixo. Disponível em: <clique aqui>
Por conta disso, no campo civil, todos nós cidadãos e cidadãs, temos os nossos direitos garantidos pela Lei, e devemos fazê-los valer. O Código Penal Brasileiro, no Capítulo V, trata claramente “Dos crimes contra a honra”, a saber: a calúnia, a difamação e a injúria. Segundo o Código Penal, caluniar alguém é imputar-lhe falsamente fatos definidos como crime (Art. 138); difamar alguém é imputar-lhe fato ofensivo à sua reputação (Art. 139); e injuriar alguém é ofender-lhe a dignidade ou o decoro (Art. 140). E para cada um desses delitos, há uma pena correspondente, incluindo reclusão e/ou multa (indenização). No caso do “bullying”, a responsabilidade pela prática de tais atos torna-se enquadrada também no Código de Defesa do Consumidor. Uma escola, por exemplo, pode ser penalizada por qualquer ato de violência que ocorra nesse ambiente, porque ela presta serviço aos consumidores, os alunos, e deve zelar por sua segurança e tranqüilidade.
E aqui vale lembrar o ilustre líder africano, principal representante do movimento anti-apartheid, advogado e ex-presidente da África do Sul, prêmio Nobel da Paz em 1993, Nelson Rolihlahla Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Lembremo-nos também de Martin Luther King, abalizado ativista político estadunidense na defesa dos direitos humanos, principalmente para negros e mulheres, através de uma campanha de não-violência e de amor para com o próximo, e prêmio Nobel da Paz em 1964. Segundo ele, “Uma das coisas importantes da não-violência é que não busca destruir a pessoa, mas transformá-la”.
Porém, insubstituível é a pedagogia de Jesus: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons; porque toda árvore é conhecida pelos seus frutos” (Lc 6,43-44b). Conseqüentemente, “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, mas o homem mau tira do seu mau tesouro coisas más, porque a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc 6,45).
Seguindo a esteira das grandes figuras histórica que deram a vida por um mundo mais justo e humano, de paz e sem violência (Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Martin Luther King, Dom Hélder Câmara, o “Profeta da Paz”, Dom Oscar Romero, cujo serviço sacerdotal à Igreja ficou assinalado com a imolação da sua vida, enquanto oferecia a Vitima Eucarística, “sacrílego assassínio”, no dizer do papa João Paulo II, o qual recebeu a notícia de sua morte com a alma trespassada de dor e tristeza), inquestionavelmente não poderíamos deixar de mencionar a médica brasileira, Zilda Arns, que morreu sucumbida sob as ruínas do terremoto que assolou a cidade de Porto Príncipe, capital do Haiti, no Caribe, dia 12 deste mês.
Mas quem realmente pode dizer algo consistente e verdadeiro a respeito da Dra. Zilda Arns é o eminente teólogo brasileiro Leonardo Boff, seu amigo pessoal. Escreveu ele: “Talvez a opinião pública mundial não se tenha dado conta da importância desta mulher que, em 2006, foi apontada como candidata ao prêmio Nobel da Paz. E bem que o merecia, pois dedicou toda sua vida à saúde das pessoas mais vulneráveis. Por 25 anos coordenou a Pastoral da Criança acompanhando mais de um milhão e 800 mil menores de cinco anos e mais de um milhão e 400 famílias pobres. A partir de 2004, iniciou a Pastoral da Pessoa Idosa com mais de cem mil idosos envolvidos. Com meios simples, como o soro caseiro, o alimento à base da multimistura e outros recursos mínimos, salvou milhares de crianças que antes fatalmente morriam. (...) A Dra. Zilda honrou o cristianismo, vivendo uma mística de amor à humanidade sofredora, de esperança de que sempre se pode fazer alguma coisa para salvar vidas, de fé na força dos fracos que se organizam e na escuta de todos até das crianças que ainda não falam. (...) Para isso, ela suscitou a sensibilidade humanitária que se esconde em cada pessoa e inaugurou a política da boa vontade. (...) Uma idéia-geradora movia sua ação, copiada da prática de Jesus: multiplicar. Não apenas pães e peixes como Ele fez, mas, nas condições de hoje, multiplicar o saber, a solidariedade e os esforços. (...) Ora, são estes conteúdos do capital espiritual que devem estar na base da nova sociedade mundial que importa gestar. O século XXI será o século do cuidado pela vida e pela Terra ou será o século de nossa auto-destruição. Até agora globalizamos a economia e as comunicações. Temos que globalizar a consciência planetária e multiplicar o saber útil à vida, a solidariedade universal, os esforços que visam construir aquilo que ainda não foi ensaiado. Amor e solidariedade não entram nas estatísticas nem nos cálculos econômicos. Mas são eles que mais buscamos e que nos podem salvar” (O legado profético de Zilda Arns, 19/01/2010. Disponível em: <clique aqui>
Sabemos que o amor, a justiça e a paz dependem da boa convivência entre os seres humanos neste mundo tão multi-étnico e pluricultural. Onde isso não acontece, a violência se intensifica e toma conta. Atualmente, pela força da mídia massiva, a violência tornou-se um assunto espetacular que alimenta os noticiários, sendo cada vez mais banalizada.
Mas venturosas já são as muitas iniciativas vindas de vários setores da sociedade para enfrentar o problema da violência. As respostas para esse fenômeno têm se mostrado múltiplas, abrangendo uma série de medidas, nos mais diversos níveis. Contudo, temos a impressão de que não avançamos. Sempre que surgem atos de violência, as discussões sobre o tema se intensificam. Mas aos poucos, tudo se abranda e quase não se fala mais no assunto até explodir uma outra ocorrência. Isto porque normalmente procuramos combater os frutos sem ir à raiz mais profunda da questão.
Em face disso, no próximo dia 17 (Quarta-feira de Cinzas), as Igrejas do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), por exemplo, lançarão a Campanha da Fraternidade Ecumênica, a qual terá como tema: “Economia e Vida” e como lema: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24c). O objetivo geral dessa CFE é bem preciso: “Colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para que todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão”.
É mais uma iniciativa ajuntando esforços das Igrejas cristãs e pessoas de boa vontade, a fim de contribuir para a construção do bem comum em vista de uma sociedade nova, com espaço e oportunidade para que todos possam viver felizes. Se as várias religiões e diferentes igrejas não trabalharem unidas num diálogo franco e construtivo, nossa paz continuará ameaçada e o nosso destino comprometido. As igrejas e religiões no seu testemunho comum devem motivar um re-encantamento com o mistério da vida e a integridade do planeta, nossa única casa comum aqui.
Diz o profeta que “o fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça constituirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,17). Dentro disso, uma economia solidária a serviço da vida torna-se indispensável para evitar a exclusão e a violência. Assim, a tão sonhada “cultura de paz” depende da cooperação, da solidariedade, do amor e da vigilância que as pessoas e as instituições mantiverem sobre a outra dimensão, igualmente presente, de rivalidade, de egoísmo e de exclusão. Nesse caso, nos ajudará bastante a atenção aos objetivos específicos da referida CFE – 2010: a) Sensibilizar a sociedade sobre a importância de valorizar todas as pessoas que a constituem; b) Buscar a superação do consumismo, que faz com que ‘ter’ seja mais importante do que as pessoas; c) Criar laços entre as pessoas de convivência mais próxima em vista do conhecimento mútuo e da superação tanto do individualismo como das dificuldades pessoais; d) Mostrar a relação entre fé e vida, a partir da prática da justiça como dimensão constitutiva do anúncio do evangelho; e) Reconhecer as responsabilidades individuais diante dos problemas decorrentes da vida econômica, em vista da própria conversão.
Em vista de todo o exposto acima, para nós que cremos em Jesus, o Mestre por excelência da não-violência, devemos compreender que é ele quem nos dá o ensinamento maior. Diante da exigência da vida e da violência que a ameaça, ele nos convida a tomarmos uma inteligente e firme decisão: “fazer o bem ou fazer o mal?” (Lc 6,9; Cf. Jo 5,16). E precisamos fazê-lo rápido! O apóstolo Paulo diz que “o tempo está abreviado” (1Cor 7,29). “Portanto, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos” (Gl 6,10), ou seja, “não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos” (Rm 12,17). Porque a prática do mal anula a nossa identidade e nos afasta de Jesus, como nos mostra o evangelista: “Não sei de onde são vocês. Afastem-se de mim, todos vocês que praticam injustiça!” (Lc 13,27).
A modo de conclusão, mais uma vez creio ter cumprido o meu papel essencial de anunciador de Cristo, Palavra de Deus encarnada, dentro ainda do "Ano Sacerdotal" e em sintonia com a Mensagem do papa Bento XVI para o 44º Dia Mundial das Comunicações Sociais, com o tema: “O sacerdote e a pastoral no mundo digital: os novos media ao serviço da Palavra”. É possível usar a Internet para o bem, vencendo o “cyberbullying” com o “cyberevangelho”. Então, enquanto a fraternidade não está realizada a contento e a violência ainda resiste, precisamos nos educar para que se estabeleça o “ideal da cultura da paz”. Que neste ano recém começado nos empenhemos conjuntamente na luta contra toda forma de violência, orientados também pelo ensino do apóstolo: “façamos esforço para colocar mais virtude na fé, mais conhecimento na virtude, mais autodomínio no conhecimento, mais perseverança no autodomínio, mais piedade na perseverança, mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade” (2Pd 1,5-7). Este é o sonho de Deus e deve ser também o nosso, verdadeira utopia (do grego: uk-topós: o lugar-outro possível e executável), na medida em que percebemos que o Reino de Deus não só é possível, mas também realizável já, aqui e agora.