sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

"NÃO USEM DE VIOLÊNCIA COM NINGUÉM E NÃO CALUNIEM" (Lc 3,14)


Pe. Paulo Nunes de Araujo


O mês de janeiro iniciou-se com o “Dia mundial da paz” e se encerra agora com o dia “Dia da não-violência”, moldurando significativamente todo o mês. São dois temas distintos, mas que se interligam porque trazem por dentro os anseios mais profundos de toda a humanidade, de ontem e de hoje, e que devem perpassar por todo o ano que recentemente se iniciou. Foi tomado o dia 30 porque nesta data, no ano de 1948, aos 78 anos de idade, morreu assassinado Mohandas Karamchand Gandhi, o “Mahatma” (do sânscrito: a “Grande Alma”) Gandhi, exímio líder pacifista indiano, fundador do movimento de não-violência naquele país. Ao morrer, suas últimas palavras foram: He Rama! (Oh, meu Deus!). A partir daí, a figura de Gandhi tornou-se modelo mundial de líder e apóstolo da não-violência.

Hoje, passados 60 anos da morte de Gandhi, nos perguntamos: Por que o mundo continua tão violento? Por que as pessoas assimilam tão automaticamente a violência? Por que a trama da violência é muito mais fecunda e ágil do que a luta pelo bem? Haveria um motivo oculto na história da humanidade para que tudo seja dessa forma?

A origem da violência é até hoje desconhecida, pois não dá para ser “medida” de modo convencional, e só é notada quando as pessoas se reúnem para dar vazão a esta surpreendente manifestação interior do ser humano. Para o Magistério da Igreja no Brasil, a situação é inquietante: “Preocupa-nos, como construtores da paz, que a vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em nosso país pelo crescimento da violência, que banaliza a vida (...). A violência se reveste de várias formas e tem vários agentes (...). Suas causas são múltiplas e interdependentes, expressões diversas da ausência de Deus no coração de muitas pessoas. (...) Diante de tudo isso, nós, cristãos, não podemos nos calar” (CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, 2008-2010. 46ª Assembléia geral. São Paulo: Paulinas, 2008, n.35). Se as causas da violência são diversas, as suas conseqüências também, e sempre trazem consigo dor, angústia, ferimentos, sejam físicos ou na alma, e até morte!

Segundo Paulo R. Ceccarelli, doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, “o aumento do ‘consumo da violência’ é fato notório: na mídia, o faturamento é garantido na exploração deste veio. Quase todas as emissoras de televisão têm programas onde a violência transborda: filmes, muitos deles à disposição de todos apresentados na ‘sessão da tarde’; programas onde acompanhamos, ao vivo, a polícia na perseguição de malfeitores; cenas reais de acidentes de carros, quedas de avião, incêndios e outras catástrofes. (...) Por outro lado, um breve passeio pela História da Humanidade nos ensina que a violência, em suas várias versões, sempre existiu: os conflitos, em maior ou melhor escala, são incontáveis; as rebeliões, as revoltas... Entretanto, o que caracteriza a violência nos dias de hoje é que ela vem sendo utilizada como uma forma, às vezes a única, de dar vazão à crescente insatisfação social, que pode começar na própria casa, com a qual o indivíduo vê-se cotidianamente confrontado” (CECCARELLI, Paulo Roberto. Violência e TV. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27 jan 2009).

Daí podemos concluir que há uma “escola da violência”. E aqui vale lembrar o ilustre líder africano e ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Ou ainda o abalizado líder estadunidense na defesa dos direitos humanos, Martin Luther King: “Uma das coisas importantes da não-violência é que não busca destruir a pessoa, mas transformá-la”. Aliás, esta é a pedagogia de Jesus: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons; porque toda árvore é conhecida pelos seus frutos” (Lc 6,43-44b). Conseqüentemente, “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, mas o homem mau tira do seu mau tesouro coisas más, porque a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc 6,45).

Para cumprir esse papel educativo e transformador, é necessário o firme empenho de todas as organizações e instituições, além das famílias como as primeiras responsáveis nesta incumbência. No caso da Igreja Católica, recordemos que a partir da sua preocupação com a realidade social do povo, na denúncia do pecado social e da promoção da justiça, à luz do Concílio Vaticano II e das Conferências de Medellín e de Puebla, ela lançou a Campanha da Fraternidade de 1993 com o lema: “Fraternidade sim, violência não”. E para este ano, à luz da Conferência de Aparecida, o lema será: “A paz é fruto da justiça”, visando debater sobre a segurança pública, além de contribuir para a promoção da “cultura de paz” na sociedade brasileira, sensibilizando a todos para o engajamento na construção de uma sociedade justa que garanta a segurança dos cidadãos.

Olhando em retrospectiva, os anos que se seguiram ao Vaticano II (1962-1965), caracterizaram-se pela mobilização popular e pela incidência de uma poderosa vontade de mudança social. Não bastavam apenas reformas. Buscava-se uma libertação da opressão histórica que as grandes maiorias vinham sofrendo. Muitos cristãos, impelidos pelo Evangelho de Jesus e pelo seu Reino, comprometeram-se com as realidades mais pobres, mais sofridas, num processo de conscientização e de prática que criava os primeiros sinais de uma sociedade nova possível. Como decorrência, sobre todos os que estavam empenhados nessa luta contra as amarras da opressão, abateu-se, aqui no Brasil, violenta repressão por parte do Estado de Segurança Nacional e de seus sequazes.

Porém, apesar de todos os contratempos, muitíssimos cristãos reforçavam a inspiração evangélica do compromisso pela libertação, inspirados na pratica de Jesus, o Libertador e Salvador. A vida toda de Jesus, morto e ressuscitado, fundou uma espiritualidade vigorosa de solidariedade e até de identificação com os sofredores e contra o seu sofrimento. O seguimento de Jesus firmava o comportamento do cristão na sociedade a ser urgentemente liberta e transformada.

É nessa mesma perspectiva da experiência de Jesus, o Senhor da vida e da liberdade, que nós devemos cogentemente desenvolver uma ação contra toda e qualquer forma de violência que destrói a vida e a dignidade dos filhos e filhas de Deus. Consideremos então a violência, procurando sempre ater-nos às suas causas e efeitos, buscando referências bíblicas sobre isso.

Para nós, cristãos, Jesus é o exemplo essencial, o paradigma por excelência que nos inspira ao compromisso com a não-violência. No entanto, vejo que atualmente a imagem de Jesus está tão despedaçada, muito distante da real figura do Jesus como nos é apresentada nos Evangelhos. Assim, para refazermos o perfil de Jesus, além de apelarmos para a Cristologia, precisamos recorrer justamente aos Evangelhos.


1. A questão essencial: Quem é Jesus?

Na busca do verdadeiro rosto de Jesus, as comunidades cristãs de hoje, devem se enraizar fundamentalmente na experiência pascal das comunidades cristãs do primeiro século. A profissão de fé dos primeiros cristãos, baseada na experiência que “Jesus é o Cristo”, que “Jesus é o Senhor”, deve ser reassumida no interior da nossa caminhada. Só então vamos compreender que as primeiras comunidades, através das suas experiências, foram proclamando a sua fé-testemunha em “Jesus (que) andou por toda parte, fazendo o bem (At 10,38).

Mas também os primeiros cristãos perceberam que a prática de Jesus acabou causando espanto e escândalo (no grego: eskandalizonto: Cf. Mt 13,57), expressão muito comum no Segundo Testamento (Cf. Mt 13,41; 16,23; 18,7; Rm 9,33; 14,13; 14,20; 1Cor 1,23; 8,9; 10,32; 2Cor 6,3; Gl 5,11; Fl 1,10; 1Pd 2,8; 1Jo 2,10). O motivo disso certamente foi a oposição de Jesus ao sistema de “pureza” da época, baseado na “lei do puro e impuro”, através da qual a classe dominante excluía os pobres dos meios de salvação. Jesus, com sua maneira de ser e de agir, cria novas esperanças de vida para as pessoas, possibilitando-as a voltarem ao convívio comunitário. Sem medo, ele toca o impuro: “Um leproso chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: ‘Se queres, tu tens o poder de me purificar’. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: ‘Eu quero, fique purificado’” (Mc 1,40-41). Jesus rompe a barreira do isolamento social imposto pela “lei do puro e impuro” e cria a "lei do amor" e da solidariedade. Além de se opor a esse sistema através da sua prática, Jesus trouxe a grande novidade: a oferta de salvação aos pobres e sofredores.

A prática de Jesus suscitou também oposição. O evangelista Marcos nos mostra que esta birra aconteceu desde o início: “Depois de saírem da sinagoga, os fariseus e os herodianos elaboraram um plano a fim de o fazer perecer (no grego: apolésosin: Mc 3,6). Mais adiante, a aversão a Jesus se radicaliza: “Os sumos sacerdotes e os doutores da Lei procuravam como prender Jesus com sutileza, para o matar (no grego: apoktéinosin: Mc 14,1b). Vemos aí que a morte de Jesus é o resultado de uma trama humana (Cf. Lc 6,11; 11,53-54; 13,31; 15,2; 16,14; 19,47; 20,19-20; 22,2.22.54; 23,14-15). Também hoje, a classe dominante e prepotente trama sutilmente a perseguição e a morte dos que lutam pela justiça e pela paz.

Em face desse cenário de violência, Jesus é “marcado para morrer”. O evangelista Marcos conservou três relatos da paixão proferidos pelo próprio Jesus (Cf. Mc 8,31; 9,31; 10,32-34). Com efeito, as autoridades judaicas (os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio), durante o interrogatório a Jesus, o acusaram de blasfemo diante de Pilatos: “Vocês ouviram a blasfêmia!” (Mc 14,64), de subversivo: “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar imposto ao imperador, e afirmando ser ele mesmo o Messias, o Rei” (Lc 23,2), de “agitador do povo” (Lc 23,14) de rebelde: “Ele está provocando revolta entre o povo com seu ensinamento” (Lc 23,5) e de facínora: “Se ele não fosse malfeitor, não o teríamos trazido até aqui” (Jo 18,30). Diante desses inquisidores malvados, a reação de Jesus foi calar-se: “Jesus, porém, não respondeu nada” (Lc 23,9). Porque ante a bestialidade, a mediocridade e a demência dos perversos, o silêncio é a melhor retórica, o mais eloqüente argumento. Por isso, esses líderes perversos foram denunciados como pessoas que “desagradam a Deus e são inimigos de todo mundo” (1Tes 2,15).

Da mesma forma, hoje em dia, a maioria dos líderes populares, antes de serem assassinados foram, igualmente a Jesus, “marcados para morrer” como por exemplo, o operário Santo Dias, o indígena Marçal Guarani, D. Oscar A. Romero y Galdamez, Pe. Josimo M. Tavares, Pe. Ezequiel Ramim, Irmã Dorothy Mae Stang, assassinada recentemente, em fevereiro de 2005, etc.. Ficou publicamente registrado que semanas antes, eles já sabiam que iam morrer. Eles não tinham luzes especiais, mas a análise da conjuntura do seu momento histórico.


2. A morte de Jesus como conseqüência da sua prática

A morte de Jesus foi causada pela sociedade estruturada na injustiça e na brutalidade. Diante dessa sociedade, Jesus foi visto como inimigo público, criminoso político. Por isso, acabaram matando Jesus violentamente (Cf. Mc 15,37; Mt 27,50; Lc 23,33.46; Jo 19,30b). Seguindo a trajetória da violência, a conclusão que daí tiramos é que Jesus estava ciente que iria morrer. E sabia disso não só porque era Deus, mas porque ele estava intensamente engajado no movimento popular do se tempo. Ou seja, a maneira de Jesus compreender a sua morte foi fruto de sua experiência, da sua inserção na luta do povo.

Por isso, inflamado pelo Espírito Santo, o apóstolo Pedro denuncia intrepidamente os “judeus devotos”, “caçoadores” do povo e assassinos de Jesus: “vocês, através dos ímpios, o mataram, pregando-o numa cruz” (At 2,23). Portanto, a morte de Jesus foi causal (teve uma causa) e não casual (obra do acaso), isto é, foi resultado de um conluio, de um cambalacho, conforme vimos antes. Então, os textos bíblicos supracitados, têm algo de histórico, porque estão diretamente inseridos na prática de Jesus, ao mesmo tempo em que traduzem uma compreensão teológica da comunidade.


3. A ressurreição de Jesus como aprovação de Deus Pai

Os violentos e assassinos não podem preponderar na brutalidade. Por isso, “Deus ressuscitou Jesus, libertando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominasse” (At 2,24). Ressuscitando Jesus, Deus demonstrou, por um lado, que aprovou a sua prática, que ele cumpriu a sua “vontade”; e, por outro lado, que reprovou e condenou a estrutura social que o matou. Daí, o ápice do quérigma, do profetismo esperançoso de Pedro: “Deus tornou Senhor e Cristo, aquele Jesus que vocês crucificaram” (At 2,36).

Assim, a partir da pessoa de Jesus e da sua mensagem, conforme consta nos Evangelhos, tiremos determinadas aplicações para a nossa vida. Para isso, tomemos alguns pressupostos fundamentais:


a) A violência e o seu percurso acelerado:

Atualmente notamos facilmente que o processo de violência é cada vez mais intenso. Mas muito tempo antes, esta ação já era verificada: “Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois, foram embora, e o deixaram quase morto” (Lc 10,30). Porém, além de ser mais aguda, hoje em dia a violência é muito mais sofisticada, crescente e seletiva, isto é, escolhem-se fria e calculadamente quem deve morrer (Cf. Mt 21,33-40; Mc 12,1-11; Mc 13,9-11; Lc 20,9-16b; Jo 8,4-5)


b) A violência no cotidiano da vida:

O mundo presente, segundo muitos psicólogos do social e sociólogos, está vivendo uma verdadeira “mentalidade da delinqüência”, verificada nos mais variados ambientes: na escola, na rua, nos estádios de futebol, nos clubes, no trabalho e até nas famílias. No passado, a literatura sapiencial já denunciava veementemente esta prática da violência: “Os injustos não dormem sem ter feito o mal; perdem o sono enquanto não fazem alguém tropeçar. Comem a maldade como pão e bebem o vinho da violência” (Pr 4,16-17). A violência está aí relacionada com coisas do dia a dia como comer e beber! Os estultos “comem” e “bebem”, isto é, vivem da violência!


c) A violência nas realidades racionalmente normais:

É muito estranho que para nós, seres humanos e inteligentes, a violência ocorre até nas situações objetivamente boas, nos casos mais insignificantes, como: na reclamação dos trabalhadores da vinha, que “ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Esses últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós...!” (Mt 20,11), isto só porque o patrão usou de justiça, igualando-os da mesma forma no que era de direito; na impertinência do irmão: “Quando chegou este teu filho, que devorou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho gordo!” (Lc 15,30); na medíocre reivindicação de Tiago e João pelo poder dominação: “Quando estiveres na glória, deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda” (Mc 10,37), o que acabou gerando “raiva” (Mc 10,41) entre os outros discípulos; na questão da inospitalidade: “Se vocês forem mal recebidos num lugar e o povo não escutar vocês, quando saírem sacudam a poeira dos pés como protesto contra eles” (Mc 6,11); na tendência doentia de depreciar e censurar as pessoas: “Não julguem, e vocês não serão julgados; não condenem e não serão condenados” (Lc 6,37).


d) A violência nas relações mais próximas:

A mentalidade da violência vai se alastrando até chegar à família, onde se estabelecem as relações mais curtas, pois na busca de viver decisivamente a proposta de Jesus baseada no direito e na justiça, em oposição aos que não querem, até as afinidades mais imediatas ficam comprometidas: “Daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas, e duas contra três. Ficarão divididos: o pai contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra” (Lc 12,49-53; 21,16-18).


e) A violência e os seus disfarces:

Nem sempre é fácil perceber os caminhos da violência, pois ela é ardilosa: “Vejam: a mão do homem que me atraiçoa está se servindo comigo nesta mesa” (Lc 22,21). Por isso mesmo, precisamos ficar espertos, para saber identificar quem são os reais malvados e violentos que, muitas vezes, estão disfarçados do nosso lado. Assim não correremos o risco de emitirmos um falso conceito a respeito de alguém como aconteceu em referência a Jesus: “eu tinha medo de ti, porque és um homem severo. Tomas o que não destes e colhes o que não semeaste” (Lc 19,21). Mas Jesus não é severo; nós não podemos nos enganar em relação a ele.

Aqui entra o papel da “mídia”. Na época, o “marketing de boca a boca” levou o povo a ficar dividido, a mudar de opinião e de posição quanto a Jesus (Cf. Jo 7,12). Por isso, uns o aprovaram: “é uma boa pessoa” e outros, ao contrário: “De jeito nenhum. É um homem que engana o povo”. E muitos, até sem saber o porquê, gratuitamente “odiaram-no sem motivo” (Jo 15,25). Conseqüentemente, quem está do lado de Jesus também é desprestigiado: “Esse povinho que não conhece a Lei, é maldito” (Jo 7,49) e chantageado: “até mesmo entre os chefes dos judeus houve quem acreditasse em Jesus. Mas, por causa dos fariseus, não se atreviam a confessar isso em público, para não serem expulsos da sinagoga” (Jo 12,42).


f) A violência e suas formas coercitivas:

Um dos artifícios da violência é a desestabilização emocional, como aconteceu com Jesus: “és um samaritano e está louco” (Jo 8,48); “ele tem um demônio! Está louco!” (Jo 10,20). Seguindo-se a isso, a violência passa pela ameaça e pela exclusão: após ter curado o leproso, “Jesus não podia entrar mais publicamente numa cidade; ele ficava fora, em lugares desertos” (Mc 1,45). Hoje em dia, ameaçam a honra, a família, o emprego, etc., exercendo toda forma de assédio moral, de discriminação, de constrangimento e de coação. No caso de um líder religioso, o ameaçam na questão da sexualidade, da afetividade, do envolvimento emocional com alguém, etc.. Mas diante disso, Jesus é o nosso animador: “Neste mundo, vocês terão aflições, mas tenham coragem; eu venci o mundo” (Jo 16,33; Cf. 17,15).


g) A violência e a transação econômica:

Outro traço marcante da violência é que ela geralmente tem uma origem monetária: “os fariseus, que são amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e caçoavam de Jesus” (Lc 16,14). Por isso, ela está quase sempre ligada à ambição, à ganância, às vantajosas negociatas. É assim que, movido pela avidez ao dinheiro, “Judas Iscariotes, foi aos chefes dos sacerdotes, e disse: ‘O que é que vocês me darão para eu entregar Jesus à vocês?’ Combinaram então trinta moedas de prata. E a partir desse momento, Judas procurava uma boa oportunidade para entregar Jesus” (Mt 26,14-16; Cf. Mc 14,10-11; Lc 22,3-6). Neste aspecto, Gandhi sabiamente dizia que “o que se obtém com violência, somente se pode manter com violência”, e que “há o suficiente no mundo para todas as necessidades humanas; não há o suficiente para a cobiça humana”. Daí que o autor da Carta aos Hebreus orienta: “Que a conduta de vocês não seja inspirada pelo amor ao dinheiro” (Hb 13,5a). Então, não há dúvidas que “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).


h) A violência e o encadeamento de forças:

Outra característica marcante da violência, muito comum hoje em dia, é a correlação de forças, mesmo as antagônicas, para engrossarem a fileira da perversidade. O evangelista Lucas, e somente ele, no relato da crucifixão de Jesus, registrou muito bem este aspecto, ao dizer que no dia da crucificação de Jesus “Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos (Lc 23,12). Isto não permite dizer que, em Jesus, os dois “se reconciliaram”, como sendo algo positivo. Lucas, na verdade, quis mostrar que a burguesia nacional (Pilatos) se uniu à burguesia internacional (Herodes), ou seja, os donos do poder na Palestina, uniram-se ao poder imperial romano para dominar o povo e, agora se uniram para matar Jesus.

Em vista do exposto, precisamos assumir algumas atitudes práticas para acabarmos com o crescente círculo da violência, pois ela é diabólica (do grego: diábolos: aquele que divide, que separa: Cf. Jo 6,70; 13,2), estrangula a comunidade e a sociedade, como advertiu o próprio Jesus: “Todo reino dividido em grupos que lutam entre si, será arruinado. E toda cidade ou família dividida em grupos que brigam entre si, não poderá durar” (Mt 12,25). E aí poderíamos perguntar com o poeta: “Que maldade você não cometeria, para acabar com a maldade? Se, no fim, pudesse mudar o mundo, o que consideraria você bom demais para fazer?” (Bertolt Brecht).

O eminente líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, cuja homenagem lhe é feita neste dia, fundou o movimento de não-violência baseado no verbo “himsa”, que em sânscrito, a língua clássica da Índia, significa: machucar, ferir, prejudicar, matar, etc.. A partir daí, Gandhi criou a “ahimsa”, que, segundo ele, “não é somente um estado negativo que consiste em não fazer o mal, mas também um estado positivo que consiste em amar, em fazer o bem a todos, inclusive a quem faz o mal”. Assim, ahimsa é o pensamento puro da Índia: a não-violência. A ahimsa foi inspirada pelo amor universal. É, portanto, a negação do verbo himsa, a renúncia a toda a intenção de morte ou dano ocasionado pela violência, se opondo a toda forma de egoísmo; é altruísmo e amor absoluto; é ação reta. A partir daí, Gandhi nos ensina que os homens de boa vontade aceitam a ahimsa. É impossível se iniciar uma nova ordem em nossa psique excluindo-se a doutrina da não-violência. A ahimsa deve ser cultivada nos lares seguindo-se a trilha do matrimônio perfeito. Só com a não-violência no pensamento, nas palavras e obras, torna-se possível reinar a felicidade nos lares. A ahimsa deve ser o fundamento do viver cotidiano no escritório, na fábrica, no campo, no lar, na escola, na rua, etc.. Devemos viver a doutrina da não-violência.

E o destacado Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz em 1964, assassinado em 1968 na luta em defesa dos direitos humanos, deixou-nos esta bela mensagem: “A maior de todas as virtudes é o amor. Neste mundo que repousa sobre a força, a tirania e a violência, tende como missão seguir o caminho do amor; descobrireis assim que o amor, desarmado, é a força mais poderosa do mundo”. E este seu “sonho” ainda continua vivo!

Nessa trilha de grandes personalidades, claro que não poderia deixar de destacar a figura contemporânea de D. Hélder Câmara, o “Profeta da Paz”, conhecido e respeitado mundialmente. No próximo dia 7, aniversário dos cem anos do seu nascimento, ele receberá homenagens em todo Brasil e em muitas partes do mundo, como reconhecimento de seu trabalho. D. Hélder foi um homem de intensa oração, de total serviço à Igreja, de profundo amor aos pobres e injustiçados, de vasta intelectualidade e bom orador, enfim, um eminente profeta de Deus. Por isso, foi o único brasileiro indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz.

Mas para nós que cremos em Jesus, o Mestre por excelência, é ele que nos dá o ensinamento maior. Diante do desafio da vida e da violência que a ameaça, precisamos tomar uma inteligente e firme decisão: fazer o bem ou fazer o mal? (Lc 6,9; Cf. Jo 5,16). E precisamos fazê-lo rápido! O apóstolo Paulo diz que “o tempo está abreviado” (1Cor 7,29). “Portanto, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos (Gl 6,10), ou seja, “não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos (Rm 12,17). Porque a prática do mal anula a nossa identidade e nos distancia de Jesus, como se vê: “Não sei de onde são vocês. Afastem-se de mim, todos vocês que praticam injustiça!” (Lc 13,27).

Dessa forma, diante de toda e qualquer forma de maldade ou violência, a grande e única saída é a prática do amor misericordioso, pois a misericórdia é o amor em abundância, “a boa medida, calcada, sacudida, transbordante” (Lc 6,38) e que ultrapassa a justiça. É exatamente aí que estaremos sendo sinal identificador do novo acontecendo: “Se vocês tiverem amor (egápe, do vergo grego: agapáo: amar) uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). Por isso, este mandamento novo amor se trata de uma ordem: “Assim como eu amei (egápsa) vocês, vocês devem se amar (agapáte) uns aos outros” (Jo 13,34b). Então, “façamos esforço para colocar mais virtude na fé, mais conhecimento na virtude, mais autodomínio no conhecimento, mais perseverança no autodomínio, mais piedade na perseverança, mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade” (2Pd 1,5-7). Aí, sim, nos tornamos “bons, e compassivos uns com os outros” (Ef 4,32).

À guisa de conclusão, enquanto a fraternidade não está realizada a contento e a violência ainda resiste, deixo esta denúncia tão antiga e tão nova: “Não há homem justo, não há um sequer. Não há homem sensato, não há quem busque a Deus. Todos se desviaram, e juntos se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é um túmulo aberto, com a língua planejam trapaças; em seus lábios há veneno de cobra. Sua boca está cheia de maldições e de amargor. Seus pés são velozes para derramar sangue; ruína e desgraça enchem seus caminhos. Não conhecem o caminho da paz, e não aprenderam a temer a Deus” (Rm 3,11-18). Por outro lado, deixo este anúncio esperançoso de “um novo céu e uma nova terra”, a fim de que o sonho de Deus e nosso, verdadeira utopia (do grego: uk-topós: o lugar-outro possível), torne-se, já neste mundo, uma realidade onde “nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Porque as coisas antigas desapareceram” (Ap 21,4). Marana tá!

 
©2007 '' Por Elke di Barros