quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"O SENHOR É MINHA LUZ E SALVAÇÃO; DE QUEM EU TEREI MEDO?" (Sl 27/26,1)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
“Ora, se nós pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de vocês dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, então Cristo também não ressuscitou; e se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia e também é vazia a fé que vocês têm” (1Cor 15,12-14). No espírito do “Ano Paulino”, com estas eloqüentes palavras do apóstolo, inspirei-me a escrever este artigo sobre o “Dia dos fiéis defuntos”.

Historicamente, alguns dados nos mostram a origem e a evolução deste “dia”. O culto aos mortos é um dos mais antigos, surgido no meio agrário e pastoril, e esteve presente em quase todas as religiões da época. Para os antigos, os mortos eram como sementes, e por isso eram enterrados na espera de um novo nascimento (ressurreição).

No século I, os cristãos tinham o costume de visitar os mortos, mas iam apenas os túmulos dos mártires, daqueles foram mortos defendendo a fé cristã. No século IV, o “Dia dos mortos” surgiu na Igreja Católica como uma ligação suplementar entre mortos e vivos, uma prática que foi assumida por todo o mundo em geral.

A partir do século V, a Igreja Católica passou a dedicar um dia do ano para rezar pelos mortos, especialmente pelos que eram esquecidos. No ano de 998, a Igreja começou a apontar um dia oficial para os mortos, o “Dia de Finados”. Por fim, entre os anos 1024 e 1033, a Igreja Católica fixou o dia 2 de novembro como o “Dia de Finados”, estabelecendo ligação deste dia com a “Solenidade de todos os santos”, esta surgida a 1º de novembro de 835.

Para os cristãos de modo geral, sobretudo para nós católicos, esse dia não pretende ser um momento fúnebre e triste, mas de celebração esperançosa da memória de nossos entes queridos que faleceram, que “morreram no Senhor”.

Essa ocasião também pretende levar-nos a lembrar que a nossa vida aqui na terra é passageira, e que nós, seres humanos, somos a única criatura divina que “aspira a eternidade”; caminhamos para Deus, pois é para ele mesmo que fomos criados. De fato, “se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens” (1Cor 15,19). Portanto, a morte deve ser vista como “fim bom”, meta almejada e um dia alcançada. Leonardo Boff, teólogo brasileiro, assevera que “a morte pertence à vida, e a vida pertence à eternidade, que é a realização plena das virtudes da vida”. Diante desse “gigante” da teologia, recordo aqui a sábia fala de um simples homem de fé: “Quem tem medo de morrer, é porque não sabe viver”. Então, “é preciso saber viver”, como diz a canção.

No entanto, mesmo para os que crêem, a realidade da morte até agora permanece um profundo mistério para o ser humano: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? E para os que não crêem direito, a morte provoca ao menos um grande respeito, uma profunda reverência; uma postura ao menos cultural e social.

A comemoração do “Dia de Finados” ainda se propõe a nos advertir contra toda e qualquer forma de reencarnação. A nossa fé cristã e católica é clara: “É um fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem o julgamento” (Hb 9,27). Por isso, reitera o Magistério eclesial: “Vigiemos constantemente, a fim de que no termo de nossa vida sobre a terra, que é só uma, mereçamos entrar com Ele para o banquete (...) e ser contados entre os eleitos” (Lumen Gentium, n. 48). E na “Solenidade de todos os santos”, a Igreja celebra todos os que morreram na graça de Deus, mesmo os que não foram canonizados oficialmente. Afinal, todos somos chamados à santidade, como dom de Deus e não mérito nosso.

Tomemos agora alguns pressupostos fundamentais. Quando Jesus ficou sabendo que estava prestes a morrer, seus discípulos ficaram tristes, angustiados, perturbados. Face a isso, Jesus deixou a eles essas palavras de conforto e consolo: “Eu vou preparar-vos um lugar. Quando tiver ido e tiver preparado um lugar para vós, voltarei novamente e vos levarei comigo para que, onde eu estiver, estejais também vós” (Jo 14,3c-3).

Nós cremos que Jesus Vivo já habita em nosso coração. A “morada” (teologicamente podemos entender como ambiente de gostosa, fraterna e amorosa convivência) que ele preparou para si em nosso íntimo não será, jamais, destruída pela morte, mas transformada no “lugar” eterno que já igualmente preparou para nós junto ao Pai.

O que acreditamos a respeito de Jesus, podemos dizer também das pessoas amadas que nos precedem na morte. Cremos que também elas nos preparam um lugar junto de Deus. Quando uma pessoa querida morre, leva para Deus tudo o que com ela partilhamos aqui na terra: as conversas, o amor, as experiências de vida em comum, etc. Vale dizer, leva consigo um pedaço de nós para junto de Deus. Diz L. Boros, teólogo húngaro, que “pela ressurreição tudo se tornará então imediato para o homem: o amor se desabrocha na pessoa, a ciência se torna visão, o conhecimento se transforma em sensação, a inteligência se faz audição. Desaparecem as barreiras do espaço: a pessoa humana existirá imediatamente onde estiver seu amor, seu desejo e sua felicidade”. Assim, diz o mesmo teólogo, “a ressurreição, na concepção cristã, não é a volta a vida de um cadáver, senão a realização exaustiva das capacidades do homem”.

Portanto, quando morremos, não iremos par um “lugar” totalmente estranho, mas para a “morada” que Cristo e as pessoas boas e amadas que nos precederam na morte nos prepararam. Lá fixaremos morada eternamente, contemplando a Deus “face a face” (1Cor 13,12), tal como ele realmente é. Esta certeza nós a encontramos já na literatura sapiencial, que apresenta os primeiros balbucios sobre a fé na ressurreição: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e, depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,25-27a). Destaca-se aí a figura do “redentor”. (no latim: redemere: re + edemere: recomprar, comprar de volta). Para o povo judeu, o “redentor” (no hebraico: go'el: redentor, resgatador, libertador, o vingador de sangue em nome da justiça) era um membro da família, do clã ou da tribo que deveria fazer justiça ao seu próximo que fora injustiçado. Para os cristãos do primeiro século, Jesus é agora o novo e definitivo Redentor, que resgata a nossa vida das garras da morte, fazendo-nos justiça com o seu próprio sangue.

Na minha experiência pastoral, nas inúmeras visitas a enfermos que realizei, ouvi muitas pessoas de fé dizerem, já à beira da morte: “Um dia vamos nos rever na eternidade”. São pessoas que realmente crêem nas palavras do próprio Jesus, dirigidas àquele que com ele também foi crucificado: “Eu te asseguro: ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

O amor que nós demos e recebemos aqui na terra não morre jamais. Dizia Gabriel Marcel, filósofo e dramaturgo francês: “amar uma pessoa significa dizer-lhe: você não morrerá”, ou ainda Anselm Grün, monge beneditino e teólogo: “na amizade existe algo indestrutível, divino, que mesmo na morte não pode ter fim”. A pessoa amada aqui na terra, será amada também na eternidade, só que de maneira nova, dentro do mistério de Deus. Essa certeza nos deu o autor do Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que repousem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem” (Ap 14,13). Aí será um amor sem distorções, um amor livre, sem exclusivismos, sem limites, enfim, um amor divino e eterno.

Mas inevitavelmente, a morte de uma pessoa querida nos causa tristeza, angústia, aflição. Afinal, somos humanos. A dor da partida de alguém é inafugentável. Bons psicólogos dizem que é preciso sofrê-la e suportá-la até o fim, ou melhor, até superá-la. Os cristãos do primeiro século, diante do conflito da morte, souberam conservar e nos ensinar a “nostalgia esperançosa” pela vinda nova do Senhor: “Nós somos cidadãos do céu. De lá esperamos o Salvador e Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21).

Também nós, hoje, vivemos esta mesma “nostalgia esperançosa”. No correr da Celebração Eucarística, por exemplo, em que fazemos memória dos falecidos, assim dizemos: “Nele (em Deus) brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Missal Romano. Prefácio dos mortos I: a esperança da ressurreição em Cristo).

Há ainda outra situação causada pela ralidade da morte; ela nos coloca diante do luto (no latim: luctu: tristeza profunda, consternação, pesar ou dor pela morte de alguém). O luto pela perda da pessoa querida nos põe também à vista de todo o tipo de luto que provavelmente já ocorreu em nossa vida, como: abandono, decepção, humilhação, fracasso, indiferença, angústia, depressão, etc.. Porém, o luto terá fim, se transformará, conduzirá a uma nova alegria de viver. Aqui, mais uma vez, em meio ao sofrimento do povo, a Palavra de Deus surge como grande acalento. No final, “não haverá mais morte, nem pranto, nem grito, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21,4).

Realmente, a pessoa que tem fé, está convencida de que não pode ficar de luto o tempo todo, a vida inteira, porque tem certeza de que quem faleceu está em Deus, como nos assegura o apóstolo Paulo: “Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma sobre os mortos, para não vos entristecerdes como as outras pessoas que não têm esperança” (1Ts 4,13). Com isso, Paulo não proíbe o luto, mas nos faz um apelo: Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4,17).

Quando S. Jerônimo traduziu os textos bíblicos originais em hebraico e grego para o latim, nesta passagem ele traduziu o verbo grego "parakaléo" (exortar, consolar) por “consolamini” (isto é: cum + solus = sozinho + com). De fato, Paulo pede que nos unamos à pessoa que está sozinha em seu luto. Esta é, sem dúvida, uma atitude profundamente humana e cristã, no entender do próprio apóstolo: “alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram” (Rm 12,15). Grande exemplo disso foi o próprio Jesus que, no episódio da “morte-ressurreição de Lázaro” (Cf. Jo 11,1-44), ao ver o povo consternado pela morte do amigo, também “começou a chorar” (Jo 11,35). Porém, certamente não foi um choro de desespero, mas de solidariedade.

No Quarto evangelho, Jesus compara a sua própria morte com o nascimento de uma criança. Assim como o parto, a morte é cheia de dores e angústias. Mas no parto, quando nasce o bebê, só a alegria toma conta. Por isso, diz Jesus que “quando a mulher está para dar a luz, fica triste porque chegou a sua hora. Mas, depois que nasceu a criança, já não se lembra mais da aflição, pela alegria que sente de ter vindo ao mundo um ser humano. Assim também vós estais tristes agora, mas eu vos verei de novo. Então o vosso coração se alegrará e ninguém poderá tirar-vos a alegria” (Jo 16,21-22). Nesta simples comparação, Jesus quer nos mostrar a grandiosidade da sua e da nossa ressurreição. Na verdade, a ressurreição de Jesus vem dizer-nos que nós não nascemos para morrer, mas morremos para ressuscitar, para termos “vida plena” (Jo 10,10).

Na Liturgia da Palavra da Missa deste “Dia de Finados”, além do comentário que já fiz acima à primeira leitura (Jó 19,25-27a), temos o belo texto do apóstolo Paulo (Rm 5,5-11), donde um versículo é destacante: “Irmãos, a esperança não decepciona” (Rm 5,5). Aqui, Paulo apresenta a mais elevada compreensão do termo “esperança” (no grego: hipomoné). Trata-se de uma esperança segura em meio aos mais variados conflitos da vida, uma esperança carregada da certeza de se alcançar a glória (vida) de Deus. Por isso, noutro momento, o apóstolo Pedro, também vai insistir na mesma questão: “reconheçam de coração o Cristo como Senhor, estando sempre prontos a dar a razão de sua (fé) e esperança a todo aquele que a(s) pede a vocês” (1Pd 3,15).

Porém, mais incisiva e determinante é a palavra do próprio Jesus, no Evangelho, acerca da morte-ressurreição: “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39). E Jesus reforça esta garantia: “pois esta é a vontade do meu pai: que toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,40). Ante esta Palavra, só nos resta nos perguntar: estamos mais abertos à vida nova que Cristo já nos trouxe, ou estamos ligados apenas à vida aqui? Procuramos fazer da Palavra de Deus, realmente Palavra de Vida? A morte é para nós o fim de tudo, ou a penetração na mais plena comunhão de amor com Deus e com toda a sua criação?

Para concluir, ofereço este lindo soneto de um famoso poeta de Ponta Delgada, Ilha dos Açores:
“Os que amei, onde estão?
Idos, dispersos, arrastados no giro dos tufões,
levados, como em sonho, entre visões,
na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
na corrente e à mercê dos turbilhões,
só vejo espuma lívida, e caixões,
e entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento,
se consigo fechar os olhos,
sinto-os a meu lado,
de novo, esses que amei vivem comigo.

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também.
Juntos no antigo amor,
no amor sagrado,
na comunhão ideal do eterno Bem”.
(QUENTAL, Antero. Com os mortos. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 20 out. 2008)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

OUTUBRO: O "MÊS MISSIONÁRIO"

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda a humanidade. Quem crer e for batizado, será salvo” (Mc 16,15-16a; Cf. Mt 28,19). Com essas palavas do apóstolo Paulo, inspirei-me a escrever este artigo, em vista do mês de outubro, o mês missionário.

As atividades do mês de outubro culminam no Dia Mundial das Missões, criado por Pio XI, chamado de “papa missionário”, em razão do seu enorme ardor evangelizador. Quanto a origem e evolução dessa data, temos as seguintes informações. Conta-se que na Solenidade de Pentecostes de 1922, Pio XI interrompeu sua homilia e, diante de um impressionante silêncio, tomou seu solidéu, fazendo-o passar entre a multidão de bispos, presbíteros e fiéis na Basílica de São Pedro, no Vaticano, enquanto pedia a toda a Igreja ajuda para as missões. Foi assim que, no mesmo ano, ele criou as Pontifícias Obras Missionárias (POM), recomendando-as como instrumentos principais e oficiais da Cooperação Missionária de toda a Igreja.

Além de estimular a criação de novas frentes missionárias, Pio XI Ordenou os primeiros bispos indianos (1923) e chineses (1926). No Ano Santo de 1925, Pio XI abriu no Vaticano uma Exposição Missionária Mundial e, em 1926, publicou a Encíclica Rerum Ecclesiae, sobre as missões, na qual reafirmava a importância dos objetivos missionários programados no início do seu pontificado. Ainda em 1926, foi-lhe proposta “a instituição, em todo o mundo católico, de um dia de oração e ofertas em favor da evangelização dos povos, a ser celebrado em um mesmo dia em todas as dioceses, paróquias e instituições do mundo católico”. Vendo isso como “uma inspiração que vem do céu”, Pio XI aprovou, em 14 de abril de 1926, a celebração anual do Dia Mundial das Missões, estabelecendo-o no penúltimo domingo de outubro.

Após oitenta e dois anos de história, no espírito do “Ano Paulino”, percebo que atualmente a Igreja está passando pelas mesmas inquietações do apóstolo Paulo, na sua época: o quê e como fazer para que o “Evangelho da salvação” se torne acessível e seja acolhido por todos, nos mais diferentes ambientes, realidades e culturas, nas famílias, em meio à juventude, etc. Enfim, com o mesmo apóstolo, nos perguntamos: “Como poderão invocar aquele no qual não creram? Como poderão crer naquele, se não ouviram falar dele? E como poderão ouvir, se não houver quem o anuncie? Como poderão anunciar se ninguém for enviado?” (Rom 10,14-15).

A missão começa a acontecer no momento em que respondemos positivamente ao chamado de Jesus: “Sigam-me” (Mc 1,17; Cf. Mc 2,14; Mt 4,19; Lc 5,10b; 9,59). Neste aspecto, o Magistério eclesial nos orienta com clareza que “ao chamar os seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o evangelho do Reino a todas as nações (Cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48). Por isso, todo discípulos é missionário, pois Jesus o faz partícipe da sua missão, ao mesmo tempo que o vincula a Ele, como amigo e irmão” (DA, n. 144). Diante do chamado de Jesus: “Sigam-me”, os seus discípulos aprenderam duas coisas básicas: “por um lado, não foram eles que escolheram seu mestre, foi Cristo quem os escolheu (Cf. 1Jo 4,10.19). E por outro lado, eles não foram convocados para algo (para purificar-se, aprender a Lei...), mas para Alguém, escolhidos para se vincularem intimamente à pessoa dele” (DA, n. 131; Cf. Mc 3,14).

Nessa mesma perspectiva, bem assevera Bento XVI: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Deus caritas est, n. 1; Cf. DA, n. 12). A partir daí formamos a Igreja-comunidade (Cf. At 2,47b; 4,32; 5,14). E os membros de uma comunidade, pelo batismo, são todos chamados e consagrados (ungidos com óleo como Jesus, o Cristo (“o ungido”: Lc 4,18-22; Cf. Is 61,1-2; 2Cor 1,21), para uma missão. Ou seja, deixamos de ser apenas discípulos(as), para sermos apóstolos(as); deixamos de ser meros objetos de ação pastoral, para nos tornar participantes ativos de evangelização (Cf. Lc 6,13), servidores do Evangelho.

Na verdade, “discipulado e missão são como as duas faces da mesma moeda. Quando o discípulo está apaixonado por Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só ele nos salva” (DA, n. 146; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 172). Portanto, a comunidade é a fonte e o fundamento da missão, da vida e do crescimento da Igreja toda. Isto porque “a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si... A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (João Paulo II. Chritifideles Laici, 32; Cf. DA, n. 163; Doc. da CNBB, 87, nn. 48-59 e 152).

Sabemos que a missão primária e fundamental da Igreja é evangelizar. Mas é preciso “anunciar o Evangelho de maneira tal que garanta a relação entre a e a vida tanto na pessoa individual como no contexto sócio-cultural em que as pessoas vivem, atuam e se relacionam entre si” (DA, n. 331; Cf. Doc. da CNBB, 87, nn. 7-8). Trata-se do verdadeiro anúncio de Jesus e do seu Reino, “que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção integral e a autêntica libertação cristã” (DA, n. 146; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 6).

Este brilhante ensinamento do Magistério eclesial é altamente importante para nós. Porque, atualmente, com a ascensão desenfreada de movimentos pentecostalistas e pentecostalizantes, nota-se uma proposital, maldosa e clara tendência de desarticular a fé da vida, de desencarnar Jesus e o seu Evangelho. No entanto, “a vida no Espírito não nos fecha em intimidade cômoda e fechada, mas sim nos torna pessoas generosas e criativas, felizes no anúncio e no serviço missionário” (DA, n. 285). Mais ainda, a nossa fé “nos capacita a assumir a missão de Jesus Cristo de realizar, na história, o Reino de Deus, proclamando-o com nossas palavras e testemunhando-o em nossa vida” (Doc. da CNBB, 87, n. 2), a exemplo do próprio Jesus (Cf. Doc. da CNBB, 87, nn. 5 e 54).

Face a isso, podemos seguramente dizer que, além de evangelizar, a Igreja também precisa ser evangelizada. Ela deve desenvolver a sua missão evangelizadora com humildade e com um diálogo aberto, sincero e positivo. E nesse diálogo, a Igreja é desafiada a comunicar bem, com uma linguagem fácil, atraente, contagiante e rica em símbolos, procurando fazer com que o Evangelho se encarne de fato na realidade, na história, na vida das pessoas. Lembro-me aqui das palavras de um famoso ator, cristão católico, recentemente falecido, referindo-se à evasão de fiéis da Igreja: “Em nosso trabalho, nós transmitimos uma mentira, uma ficção (seja novela, filme ou teatro) com um tom de verdade. Mas muitos na Igreja, transmitem a grande Verdade (Jesus), com um tom de mentira”. De fato, na boca de muitos, a mensagem não passa, não convence, não contagia, não muda a vida. Porque a mensagem acaba ficando carente de força necessária, de profetismo.

Em nosso contexto atual, inúmeros são os desafios à evangelização, como o aumento populacional, as enormes extensões territoriais, a escassez de evangelizadores, a indiferença religiosa, a falta de apoio afetivo e encorajador de muitos pastores, a secularização, o relativismo de valores, as perseguições e ataques até violentos aos anunciadores do Evangelho, entre tantos outros. Face a essa difícil realidade, o Magistério eclesial nos lança algumas luzes, que nos reacendem novo ardor, como por exemplo:

a) “A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias da vida. (...). Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo” (DA, n. 11);

b) “Não temos outro tesouro a não ser este (Jesus). Não temos outra felicidade nem outra prioridade senão a de sermos instrumentos do Espírito de Deus na Igreja para que Jesus Cristo seja encontrado, seguido, amado, adorado, anunciado e comunicado a todos, não obstante as dificuldades e resistências” (DA, n. 14);

c) “Anunciamos a nossos povos que Deus nos ama, que sua existência não é ameaça para o homem, que Ele está perto com o seu poder salvador e libertador de seu Reino, que ele nos acompanha na tribulação, que alenta incessantemente nossa esperança em meio a todas as provas” (DA, n. 30).

Posto isto, a Igreja na América Latina e Caribe está convocada a colocar-se em “estado permanente de missão” (DA, n. 551). Porque “só uma Igreja missionária e evangelizadora experimenta a fecundidade e a alegria de quem realmente realiza a sua vocação” (Doc. da CNBB, 87, n. 210). Assim, ninguém deve isentar-se dessa proposta, muito especialmente os fiéis “leigos”, os quais de fato “realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo de Cristão na Igreja e no mundo” (Lumen Gentium, n. 31). Realmente, “a evangelização do Continente não pode realizar-se hoje sem a colaboração dos fiéis leigos” (João Paulo II. Exortação Apostólica Ecclesia in America, n. 44). O anúncio de Jesus e do seu Reino, indiscutivelmente, é missão de todos nós.

Essa responsabilidade que recai sobre nós batizados, indistintamente, não pode ser vista como algo enfadonho, esmorecedor, desgregador. Seguramente, o desejo da Igreja é que a caminhada das comunidades se faça de forma ordenada evitando-se abusos, discriminações, arbítrios, etc.. Pois tal era o senso de co-responsabilidade reinante entre os cristãos do primeiro século: “de fato, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias” (At 15,28). Assim, faremos sempre valer uma sincera caridade pastoral.

Para concluir, lembrando que este é também o Mês do Rosário, peço a Deus que nos abençoe e que a Virgem do Rosário, “Maria, Mãe do Senhor, primeira evangelizada e primeira evangelizadora, nos inspire com seu exemplo de fidelidade e disponibilidade incondicional ao Reino de Deus e nos acompanhe com sua materna intercessão” (Doc. da CNBB, 87, n. 216). E que Sta. Terezinha do Menino Jesus, a “padroeira das missões”, nos ajude a responder firmemente como os discípulos de Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores” (Lc 9,57).

 
©2007 '' Por Elke di Barros