quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"O SENHOR É MINHA LUZ E SALVAÇÃO; DE QUEM EU TEREI MEDO?" (Sl 27/26,1)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
“Ora, se nós pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de vocês dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, então Cristo também não ressuscitou; e se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia e também é vazia a fé que vocês têm” (1Cor 15,12-14). No espírito do “Ano Paulino”, com estas eloqüentes palavras do apóstolo, inspirei-me a escrever este artigo sobre o “Dia dos fiéis defuntos”.

Historicamente, alguns dados nos mostram a origem e a evolução deste “dia”. O culto aos mortos é um dos mais antigos, surgido no meio agrário e pastoril, e esteve presente em quase todas as religiões da época. Para os antigos, os mortos eram como sementes, e por isso eram enterrados na espera de um novo nascimento (ressurreição).

No século I, os cristãos tinham o costume de visitar os mortos, mas iam apenas os túmulos dos mártires, daqueles foram mortos defendendo a fé cristã. No século IV, o “Dia dos mortos” surgiu na Igreja Católica como uma ligação suplementar entre mortos e vivos, uma prática que foi assumida por todo o mundo em geral.

A partir do século V, a Igreja Católica passou a dedicar um dia do ano para rezar pelos mortos, especialmente pelos que eram esquecidos. No ano de 998, a Igreja começou a apontar um dia oficial para os mortos, o “Dia de Finados”. Por fim, entre os anos 1024 e 1033, a Igreja Católica fixou o dia 2 de novembro como o “Dia de Finados”, estabelecendo ligação deste dia com a “Solenidade de todos os santos”, esta surgida a 1º de novembro de 835.

Para os cristãos de modo geral, sobretudo para nós católicos, esse dia não pretende ser um momento fúnebre e triste, mas de celebração esperançosa da memória de nossos entes queridos que faleceram, que “morreram no Senhor”.

Essa ocasião também pretende levar-nos a lembrar que a nossa vida aqui na terra é passageira, e que nós, seres humanos, somos a única criatura divina que “aspira a eternidade”; caminhamos para Deus, pois é para ele mesmo que fomos criados. De fato, “se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens” (1Cor 15,19). Portanto, a morte deve ser vista como “fim bom”, meta almejada e um dia alcançada. Leonardo Boff, teólogo brasileiro, assevera que “a morte pertence à vida, e a vida pertence à eternidade, que é a realização plena das virtudes da vida”. Diante desse “gigante” da teologia, recordo aqui a sábia fala de um simples homem de fé: “Quem tem medo de morrer, é porque não sabe viver”. Então, “é preciso saber viver”, como diz a canção.

No entanto, mesmo para os que crêem, a realidade da morte até agora permanece um profundo mistério para o ser humano: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? E para os que não crêem direito, a morte provoca ao menos um grande respeito, uma profunda reverência; uma postura ao menos cultural e social.

A comemoração do “Dia de Finados” ainda se propõe a nos advertir contra toda e qualquer forma de reencarnação. A nossa fé cristã e católica é clara: “É um fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem o julgamento” (Hb 9,27). Por isso, reitera o Magistério eclesial: “Vigiemos constantemente, a fim de que no termo de nossa vida sobre a terra, que é só uma, mereçamos entrar com Ele para o banquete (...) e ser contados entre os eleitos” (Lumen Gentium, n. 48). E na “Solenidade de todos os santos”, a Igreja celebra todos os que morreram na graça de Deus, mesmo os que não foram canonizados oficialmente. Afinal, todos somos chamados à santidade, como dom de Deus e não mérito nosso.

Tomemos agora alguns pressupostos fundamentais. Quando Jesus ficou sabendo que estava prestes a morrer, seus discípulos ficaram tristes, angustiados, perturbados. Face a isso, Jesus deixou a eles essas palavras de conforto e consolo: “Eu vou preparar-vos um lugar. Quando tiver ido e tiver preparado um lugar para vós, voltarei novamente e vos levarei comigo para que, onde eu estiver, estejais também vós” (Jo 14,3c-3).

Nós cremos que Jesus Vivo já habita em nosso coração. A “morada” (teologicamente podemos entender como ambiente de gostosa, fraterna e amorosa convivência) que ele preparou para si em nosso íntimo não será, jamais, destruída pela morte, mas transformada no “lugar” eterno que já igualmente preparou para nós junto ao Pai.

O que acreditamos a respeito de Jesus, podemos dizer também das pessoas amadas que nos precedem na morte. Cremos que também elas nos preparam um lugar junto de Deus. Quando uma pessoa querida morre, leva para Deus tudo o que com ela partilhamos aqui na terra: as conversas, o amor, as experiências de vida em comum, etc. Vale dizer, leva consigo um pedaço de nós para junto de Deus. Diz L. Boros, teólogo húngaro, que “pela ressurreição tudo se tornará então imediato para o homem: o amor se desabrocha na pessoa, a ciência se torna visão, o conhecimento se transforma em sensação, a inteligência se faz audição. Desaparecem as barreiras do espaço: a pessoa humana existirá imediatamente onde estiver seu amor, seu desejo e sua felicidade”. Assim, diz o mesmo teólogo, “a ressurreição, na concepção cristã, não é a volta a vida de um cadáver, senão a realização exaustiva das capacidades do homem”.

Portanto, quando morremos, não iremos par um “lugar” totalmente estranho, mas para a “morada” que Cristo e as pessoas boas e amadas que nos precederam na morte nos prepararam. Lá fixaremos morada eternamente, contemplando a Deus “face a face” (1Cor 13,12), tal como ele realmente é. Esta certeza nós a encontramos já na literatura sapiencial, que apresenta os primeiros balbucios sobre a fé na ressurreição: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e, depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,25-27a). Destaca-se aí a figura do “redentor”. (no latim: redemere: re + edemere: recomprar, comprar de volta). Para o povo judeu, o “redentor” (no hebraico: go'el: redentor, resgatador, libertador, o vingador de sangue em nome da justiça) era um membro da família, do clã ou da tribo que deveria fazer justiça ao seu próximo que fora injustiçado. Para os cristãos do primeiro século, Jesus é agora o novo e definitivo Redentor, que resgata a nossa vida das garras da morte, fazendo-nos justiça com o seu próprio sangue.

Na minha experiência pastoral, nas inúmeras visitas a enfermos que realizei, ouvi muitas pessoas de fé dizerem, já à beira da morte: “Um dia vamos nos rever na eternidade”. São pessoas que realmente crêem nas palavras do próprio Jesus, dirigidas àquele que com ele também foi crucificado: “Eu te asseguro: ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

O amor que nós demos e recebemos aqui na terra não morre jamais. Dizia Gabriel Marcel, filósofo e dramaturgo francês: “amar uma pessoa significa dizer-lhe: você não morrerá”, ou ainda Anselm Grün, monge beneditino e teólogo: “na amizade existe algo indestrutível, divino, que mesmo na morte não pode ter fim”. A pessoa amada aqui na terra, será amada também na eternidade, só que de maneira nova, dentro do mistério de Deus. Essa certeza nos deu o autor do Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que repousem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem” (Ap 14,13). Aí será um amor sem distorções, um amor livre, sem exclusivismos, sem limites, enfim, um amor divino e eterno.

Mas inevitavelmente, a morte de uma pessoa querida nos causa tristeza, angústia, aflição. Afinal, somos humanos. A dor da partida de alguém é inafugentável. Bons psicólogos dizem que é preciso sofrê-la e suportá-la até o fim, ou melhor, até superá-la. Os cristãos do primeiro século, diante do conflito da morte, souberam conservar e nos ensinar a “nostalgia esperançosa” pela vinda nova do Senhor: “Nós somos cidadãos do céu. De lá esperamos o Salvador e Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21).

Também nós, hoje, vivemos esta mesma “nostalgia esperançosa”. No correr da Celebração Eucarística, por exemplo, em que fazemos memória dos falecidos, assim dizemos: “Nele (em Deus) brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Missal Romano. Prefácio dos mortos I: a esperança da ressurreição em Cristo).

Há ainda outra situação causada pela ralidade da morte; ela nos coloca diante do luto (no latim: luctu: tristeza profunda, consternação, pesar ou dor pela morte de alguém). O luto pela perda da pessoa querida nos põe também à vista de todo o tipo de luto que provavelmente já ocorreu em nossa vida, como: abandono, decepção, humilhação, fracasso, indiferença, angústia, depressão, etc.. Porém, o luto terá fim, se transformará, conduzirá a uma nova alegria de viver. Aqui, mais uma vez, em meio ao sofrimento do povo, a Palavra de Deus surge como grande acalento. No final, “não haverá mais morte, nem pranto, nem grito, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21,4).

Realmente, a pessoa que tem fé, está convencida de que não pode ficar de luto o tempo todo, a vida inteira, porque tem certeza de que quem faleceu está em Deus, como nos assegura o apóstolo Paulo: “Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma sobre os mortos, para não vos entristecerdes como as outras pessoas que não têm esperança” (1Ts 4,13). Com isso, Paulo não proíbe o luto, mas nos faz um apelo: Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4,17).

Quando S. Jerônimo traduziu os textos bíblicos originais em hebraico e grego para o latim, nesta passagem ele traduziu o verbo grego "parakaléo" (exortar, consolar) por “consolamini” (isto é: cum + solus = sozinho + com). De fato, Paulo pede que nos unamos à pessoa que está sozinha em seu luto. Esta é, sem dúvida, uma atitude profundamente humana e cristã, no entender do próprio apóstolo: “alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram” (Rm 12,15). Grande exemplo disso foi o próprio Jesus que, no episódio da “morte-ressurreição de Lázaro” (Cf. Jo 11,1-44), ao ver o povo consternado pela morte do amigo, também “começou a chorar” (Jo 11,35). Porém, certamente não foi um choro de desespero, mas de solidariedade.

No Quarto evangelho, Jesus compara a sua própria morte com o nascimento de uma criança. Assim como o parto, a morte é cheia de dores e angústias. Mas no parto, quando nasce o bebê, só a alegria toma conta. Por isso, diz Jesus que “quando a mulher está para dar a luz, fica triste porque chegou a sua hora. Mas, depois que nasceu a criança, já não se lembra mais da aflição, pela alegria que sente de ter vindo ao mundo um ser humano. Assim também vós estais tristes agora, mas eu vos verei de novo. Então o vosso coração se alegrará e ninguém poderá tirar-vos a alegria” (Jo 16,21-22). Nesta simples comparação, Jesus quer nos mostrar a grandiosidade da sua e da nossa ressurreição. Na verdade, a ressurreição de Jesus vem dizer-nos que nós não nascemos para morrer, mas morremos para ressuscitar, para termos “vida plena” (Jo 10,10).

Na Liturgia da Palavra da Missa deste “Dia de Finados”, além do comentário que já fiz acima à primeira leitura (Jó 19,25-27a), temos o belo texto do apóstolo Paulo (Rm 5,5-11), donde um versículo é destacante: “Irmãos, a esperança não decepciona” (Rm 5,5). Aqui, Paulo apresenta a mais elevada compreensão do termo “esperança” (no grego: hipomoné). Trata-se de uma esperança segura em meio aos mais variados conflitos da vida, uma esperança carregada da certeza de se alcançar a glória (vida) de Deus. Por isso, noutro momento, o apóstolo Pedro, também vai insistir na mesma questão: “reconheçam de coração o Cristo como Senhor, estando sempre prontos a dar a razão de sua (fé) e esperança a todo aquele que a(s) pede a vocês” (1Pd 3,15).

Porém, mais incisiva e determinante é a palavra do próprio Jesus, no Evangelho, acerca da morte-ressurreição: “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39). E Jesus reforça esta garantia: “pois esta é a vontade do meu pai: que toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,40). Ante esta Palavra, só nos resta nos perguntar: estamos mais abertos à vida nova que Cristo já nos trouxe, ou estamos ligados apenas à vida aqui? Procuramos fazer da Palavra de Deus, realmente Palavra de Vida? A morte é para nós o fim de tudo, ou a penetração na mais plena comunhão de amor com Deus e com toda a sua criação?

Para concluir, ofereço este lindo soneto de um famoso poeta de Ponta Delgada, Ilha dos Açores:
“Os que amei, onde estão?
Idos, dispersos, arrastados no giro dos tufões,
levados, como em sonho, entre visões,
na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
na corrente e à mercê dos turbilhões,
só vejo espuma lívida, e caixões,
e entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento,
se consigo fechar os olhos,
sinto-os a meu lado,
de novo, esses que amei vivem comigo.

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também.
Juntos no antigo amor,
no amor sagrado,
na comunhão ideal do eterno Bem”.
(QUENTAL, Antero. Com os mortos. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 20 out. 2008)

 
©2007 '' Por Elke di Barros