quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

"JUSTIÇA E PAZ SE ABRAÇAM" (Sl 85/84,11b)

Pe. Paulo Nunes de Araujo

“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que ele ama” (Lc 2,14). Com estas palavras proferidas pela grande multidão de anjos, na cena do nascimento de Jesus, ainda dentro deste tempo do Natal, propus-me a compor este escrito, a propósito do Dia mundial da paz. Este dia foi instituído pelo papa Paulo VI, em 1968, passando a ser comemorado a 1º de janeiro em toda a Igreja católica, com o objetivo de rezar para que a humanidade encontre o caminho da justiça e da paz, a fim de que todos os povos abandonem as armas e vivam como irmãos. No mesmo 1º de janeiro comemora-se também o Dia da Fraternidade Universal. Aqui no Brasil, esta data foi instituída pela lei n. 108, de 29/10/1935.

Na abordagem sobre “a realidade que nos interpela”, ao tratar da “situação sociopolítica” nas novas “Diretrizes Gerais”, o Magistério eclesial brasileiro faz ecoar, sem dúvida, o clamor de todo o povo que pede justiça e paz, diante de tanta violência, quando dizem: “Preocupa-nos, como construtores da paz, que a vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em nosso país pelo crescimento da violência, que banaliza a vida (...). A violência se reveste de várias formas e tem vários agentes (...). Suas causas são múltiplas e interdependentes, expressões diversas da ausência de Deus no coração de muitas pessoas” (Doc. da CNBB, 87, n. 35). Daí a pertinente conclamação: “Diante de tudo isso, nós, cristãos, não podemos nos calar” (Ibidem).

Muito positivo é que atualmente “em todo lugar, organizações estão falando ou começam a falar de ‘construir uma cultura da paz’ para combater violência e miséria. Governos, ONG’s, escolas, igrejas... Isto é bom. Mas não basta falar de paz; é preciso ver a proposta e a ideologia que está na sua base! (...) Pensar e agir local e globalmente à luz da paz que vem de Deus é viabilizar e construir processos culturais que colocam a vida digna, justa e prazerosa como prioridade. Participar disto é afirmar a nossa construção de identidade participante de projetos de Deus em nosso cotidiano” (REIMER, Ivoni Richter. Construir culturas de paz. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008). Para este meu texto, calcado na teologia, vou ater-me a cinco pontos, buscando sublinhar os elementos fundamentais que cada um deles nos oferece para a construção da paz.


1. Uma aliança de paz e para se fundar a paz

Se tomarmos por base os países do Oriente Médio, vamos perceber que é comum, ainda hoje, ouvir uma tradição que vem de muito antes, das raízes mesmas da vida e da cultura destes povos: a saudação shalom que, em hebraico, quer dizer paz. É a maneira que os israelitas têm de se saudar. O mesmo acontece com os árabes, que usam o termo salam, que tem igual significado: paz.

No mundo bíblico, paz é um conceito fundamental. Só na Bíblia hebraica (Primeiro Testamento) este termo aparece 239 vezes. A palavra hebraica "shalom" vem da raiz verbal "shalam", muito antiga e comum a todas as línguas semitas e expressa não só uma ausência de guerra, mas uma idéia de perfeição, de “estar completo”, de “estar perfeito”, de “estar terminado”, de “estar trasbordante”. Portanto, quem vive no shalom está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude. Daí que para o povo judeu, shalom indica tudo o que há de bom e abundante na vida: paz, tranqüilidade, serenidade, calma, concórdia; prosperidade, bem-estar, felicidade, sossego. Em síntese, shalom é um termo que exprime todo um ideal de felicidade na prosperidade individual e coletiva, na boa relação para com Deus e na harmonia social, gerando vida em todas as suas expressões.

Porém, a tradução do shalom hebraico por eirêne (paz) na Bíblia grega, enfraqueceu o seu significado, uma vez que eirêne remete a uma idéia de ataraxia (denotando ausência de movimento e conflito), o que não corresponde à paz bíblica. Em todo caso, destaca-se na Bíblia hebraica o significado da paz como fruto do cumprimento da vontade de Deus, como vemos: “Que (Deus) lhes abra o coração a sua Lei e seus mandamentos, e lhes conceda a paz” (2Mac 1,4). A paz é, aqui, apresentada como o resultado da observância da Toráh (Lei) e, por conseguinte, indica “bênção” e “salvação” em sentido profundamente teológico. Consequentemente podemos dizer que a paz refere-se à aliança que Deus fez com a humanidade. Trata-se de uma aliança de paz para realizar a paz (Cf. Nm 25,12; Is 26,12; 55,12; Ez 34,25).


2. Desde a origem, Deus nos criou para a harmonia e a paz

No livro do Gênesis temos a narrativa do “jardim de Éden (lugar das delícias, dos prazeres: Cf. Gn 2,8.15; 3,23.24). Éden sinalizava um modo de vida marcado pela harmonia das pessoas entre si, com a natureza e com Deus. Mas a ganância e a ambição do ser humano destruíram essa condição. Daí as narrativas da entrada do mal e da violência no mundo, simbolizado pela serpente: o fratricídio de Caim (Cf. Gn 4,1-16), o dilúvio (Cf. Gn 6,5—9,17), a torre de babel, ou melhor: “torre de balal ("confundir": Cf. Gn 11,1-10).

Mas o autor do Gênesis mostra que Deus buscou reverter a situação de violência, a partir de algumas decisivas alternativas: o nascimento de outro filho de Adão, Set (em hebraico: Shêt, de shat ("ele concedeu": Cf. Gn 4,25-26); o nascimento de Noé (em hebraico noah, provavelmente de naham: consolar, confortar, aliviar, acalmar, tranqüilizar: Cf. Gn 5,28-29), porque foi através dele que Deus restabelece aliança com o povo na cena da pomba que, após o dilúvio, “trazia, no bico, um ramo novo de oliveira” (Gn 8,6-11), indicando segurança, tranqüilidade e paz. Daí a simbologia da “pomba da paz”; a figura de Abraão (em hebraico Av’raham, de Av’hamôn: "pai de multidão": Cf. Gn 17,1-8).


3. Profetas: denunciadores da violência e anunciadores da paz

Diante do caos, Deus suscita profetas, homens e mulheres, para o anúncio, a denúncia e apelo à conversão. A verdadeira profecia desmascara a falsa religião que levava os poderosos a acharem que estavam em paz com Deus. A exploração econômica é uma espécie de assassinato (Cf. Am 8,4-6). Contra o falso culto dos poderosos, Deus fala através do profeta: “É o amor (no hebraico hessed: solidariedade, lealdade, compromisso, bondade) que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus (no hebraico dá’ah: co-nascer, mostrar na prática aquilo que Deus é) mais do que holocaustos” (Os 6,6; Cf. Sir 34,18-22). Porque o único sacrifício válido é a conversão sincera que se traduz na prática do verdadeiro amor.

Os profetas Isaías e Miquéias, por exemplo, falam de um novo tempo, uma vida nova. Jerusalém será um lugar para onde os povos trilharão e viverão em paz, com cada um tendo o suficiente para viver (Cf. Is 2,2-5; Mq 4,1-4). Trata-se de uma paz verdadeira! Porque não adianta dizer: “‘Paz! Paz!’ quando não há paz” (Jr 6,14). De fato, “o fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça constituirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,17). Por isso, para Isaías, o anúncio da paz é autêntico evangelho (boa notícia) aos exilados: “como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz (Is 52,7).

Além dos profetas, também os salmistas convidam o povo a suplicar a verdadeira paz: “Pedi a paz para Jerusalém” (Sl 122/121,6a); “Evita o mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a” (Sl 34/33,15). É uma paz que só Deus dá: “Ouvirei o que Javé Deus diz, porque ele fala de paz”; “Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam” (Sl 85/84,9.11). Assim, a dádiva de Deus e a nossa resposta-compromisso andam de mãos dadas, abraçadas, gozando de felicidade. Quando uma larga da outra, instala-se o caos, a injustiça, toda forma de violência, perda de sentido, portanto, ausência de shalom!


4. Jesus nos comunica e propõe a paz

Os ensinamentos do Primeiro e do Segundo Testamentos podem contribuir para uma reflexão sobre a possibilidade da paz no mundo de hoje se se tiver diante dos olhos as exigências dos profetas. O shalom, na perspectiva bíblica, só é possível numa sociedade que vive de acordo com as exigências divinas postuladas na Toráh (Lei). Estas exigências foram assumidas na pregação de Jesus Cristo e a comunidade cristã, desde os primeiros tempos, as conservou nos evangelhos e nos outros escritos do Segundo Testamento. Uma vida em conformidade com as exigências divinas possibilita criar na sociedade um procedimento ético de respeito aos direitos do próximo, os direitos humanos, que ajudam a viver a justiça e, portanto, a construir a paz. Desse modo, na teologia do Primeiro Testamento é impossível construir uma sociedade justa sem o respeito à vontade de Deus expressa em seus mandamentos.

Segundo o evangelista Mateus, Jesus começou a sua vida pública com um discurso programático que é iniciado com o chamado “sermão da montanha”, onde se destacam oito “bem-aventuranças”, entre as quais, “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Dentro do contexto das bem-aventuranças, portanto, para participar do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo, é necessário que o discípulo seja um construtor da paz, e trabalhe para que a paz reine efetivamente na comunidade.

O evangelista Lucas abre o seu evangelho protagonizando a figura de Maria, a Mãe de Jesus, como porta-voz de todos os sofredores desejosos de um mundo novo, cheio de paz. No Magnificat (Cf. Lc 1,46-55), por exemplo, Maria exulta de alegria porque Deus “olhou para a humilhação (do grego: tapéinosin: Lc 1,48a) não só dela, mas de todos os pobres e marginalizados da época.

Portanto, no Magnificat há um nítido contraste entre o sim exultante da comprovação de que Deus interveio decisivamente na história, libertando os humilhados das mãos dos opressores, ao anunciar o Salvador: “Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,48b-49a) e o não de Deus que ressoa da boca de Maria às forças do anti-Reino que ameaçam destruir seu Projeto salvífico. É o não ao mal social da injustiça; o não ao pecado da alienação, que se omite diante do sofrimento dos outros; o não ao mal teológico do pecado.

E nas “narrativas da infância” de Jesus, Lucas o apresenta como o portador da paz ao mundo por excelência, como vemos nas palavras proferidas pela grande multidão de anjos: “Glória a Deus nas alturas e paz (no grego: eirêne) na terra aos homens que ele ama” (Lc 2,14). Aliás, Lucas é o evangelista que mais utiliza o termo grego eirêne (paz), uma vez que este termo aparece 92 vezes no Segundo Testamento. Só nos evangelhos, esta palavra ocorre 25 vezes: 4 em Mateus, 1 em Marcos, 6 em João e 14 em Lucas. Nesta proclamação dos anjos, o evangelista expõe que no nascimento de Jesus a glória de Deus e a paz, em seu significado pleno de vida e salvação, de ausência de conflitos e de vitória sobre o mal e a injustiça, é oferecida a todos os seres humanos.

Este bom anúncio aos mais pequenos (os pastores) “revela, aliado à figura do menino, que a salvação agora oferecida não é apanágio dos grandes, que sempre se apoderam dos melhores bens da humanidade. A partir de agora, os bens messiânicos prometidos estarão acessíveis a todos, desde os mais pequenos aos maiores. Em contraste com a pequenez dos pastores, o coro dos anjos representa a universalidade cósmica do anúncio. Não é apenas aos pequenos e grandes de Israel, mas a todo o universo que o nascimento de Jesus diz respeito. Além disso, os anjos representam o mundo de Deus, que se torna presente entre os homens. No sinal pacífico e aparentemente impotente do menino revela-se a totalidade do poder salvador de Deus que os anjos anunciam” (CARVALHO, José Ornelas. A utopia da paz na Bíblia, II. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008). Assim, a glória de Deus revela-se na paz do ser humano, na sua felicidade plena. Aqui vale lembrar Santo Irineu (130-202.): “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem consiste em ver a Deus. Pois se a manifestação de Deus que é feita por meio da criação, permite a vida de todos os seres vivos na Terra, muito mais a revelação do Pai que nos é comunicada pelo Verbo, comunica a vida àqueles que amam a Deus” (Adversus Haereses IV, 20, 7).

A paz que Jesus propõe tem a ver com a vida abundante. E a paz enquanto plenitude dos bens messiânicos passa pela salvação integral da pessoa e manifesta-se na palavra e nos gestos de Jesus. Por duas vezes, Lucas associa expressamente a ação libertadora de Jesus à transmissão da paz: àquela “certa mulher, conhecida na cidade como pecadora” e àquela “mulher que sofria de hemorragia havia doze anos”. A cada uma delas Jesus diz: “Sua fé salvou você. Vá em paz! (Lc 7,50; 8,48). “Para estas mulheres, o contato com Jesus significou paz, como regeneração total do seu ser, a começar pelo restabelecimento da saúde e pelo dom do perdão que desaliena e restabelece a dignidade da pessoa. As curas físicas por ele operadas, são o primeiro sinal da plenitude da regeneração da vida, o começo da paz. Por isso a fé, entendida como adesão à sua pessoa, constitui o fundamento da paz, pois é ela que torna possível a comunhão com o Senhor da vida” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Seguindo o exemplo de Jesus, o apóstolo Paulo nos mostra que a paz está sempre ligada à graça, ela provém da graça de Deus que recebemos em Jesus Cristo, com podemos ver: “Que a paz de Cristo reine coração de vocês. Para esta paz vocês foram chamados, como membros de um mesmo corpo” (Cl 3,15). Paulo nos mostra ainda que a paz é um dos frutos do Espírito Santo quando diz que “o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, fé, mansidão e domínio de si” (Gl 5,22); que “o Reino de Deus não é questão de comida ou bebida: é justiça, paz, alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Por isso, o apóstolo pode afirmar que “justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5,1), porque realmente “Cristo é a nossa paz” (Ef 2,14a).

O apostolo Tiago, por sua vez, seguindo a perspectiva profética do passado, nos mostra a íntima ligação entre justiça e paz, quando diz intrepidamente que “um fruto de justiça é semeado na paz para aqueles que trabalham pela paz” (Tg 3,18). Entende-se aí justiça como a conduta humana justa como resposta à vontade de Deus, uma conduta de acordo com as exigências de Deus. Quem constrói a paz está semeando os frutos da justiça, no sentido de obediência às exigências divinas.

Por conseqüência, diante de um mundo tão dividido, injusto, violento, Jesus veio nos trazer a verdadeira paz: “Deixo para vocês a paz, eu lhes dou a minha paz. A paz que eu dou para vocês não é a paz que o mundo dá” (Jo 14,27). Por aí vemos que este grande desejo de todos os tempos e em todas as culturas, atinge culminância em Jesus, quando ele diz reiteradas vezes: “A paz esteja convosco” (Lc 24,36; Jo 20,21.26d), e recomenda esta saudação aos seus discípulos missionários: “A paz esteja nesta casa!” (Lc 10,5). Portanto, esta é a grande saudação bíblica, muito comum aos apóstolos ao escreverem suas cartas às comunidades, como por exemplo: “Aos irmãos a paz, o amor e a fé” (Ef 6,23); “Que a graça e a paz de Deus...” (Fl 1,2); “A vocês, graça e paz” (1Ts 1,1; 2Ts 1,2); “Graça, misericórdia e paz” (1Tm 1,2); “Que haja abundância de graça e paz” (2Pd 1,2); “Que a paz esteja com você” (3Jo v. 15); “Que a misericórdia, a paz e o amor sejam concedidos em abundância a vocês” (Jd v. 2); “Desejo a vocês a graça e a paz” (Ap. 1,4); etc.. Isto porque toda pessoa que se dispõe a seguir Jesus, deve “viver em paz com todos” (Rm 12,17; Cf. 1Cor 13,11; 1Ts 5,13), tanto nas palavras quanto nos exemplos, pois quem vivencia a paz de Deus deve tornar-se alguém que faz paz (Mt 5,9; Tg 3,18).

Mas é preciso ter claro que “a paz não se identifica simplesmente com o calar-se dos canhões ou a ausência de conflitos, mas é um projeto dinâmico e construtivo, destinado a possibilitar o desenvolvimento de pessoas e sociedades livres, dignas, justas e felizes. Um projeto destes exige disponibilidade, desapego e esforço, que não se compadecem com atitudes ambíguas de pseudoconciliação de valores inconciliáveis. A violência evangélica tem início na própria pessoa, pois a verdadeira paz é incompatível com o ‘deixa-me em paz!’, dos que não querem ser incomodados no seu egoísmo, comodismo ou tendências adversas à edificação do Reino. Quem não for capaz de se inquietar com os problemas da humanidade, quem nunca empreender nada para não ter problemas, refugiando-se na ‘sua paz’, nunca entenderá a paz do evangelho” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

No entanto, sabemos que o Projeto de Jesus, propondo a transformação das pessoas e de toda a sociedade, não é tão pacífico assim, como nos adverte o próprio Jesus: “Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos” (Mt 10,16). O conflito muitas vezes é inevitável a todos os níveis, pois “frequentemente os construtores da paz são apelidados de rebeldes, de agitadores, de perturbadores da ordem pública, por aqueles que, para defender os seus interesses e o seu poder, instalam sistemas injustos e opressores. Não raro, esses sistemas de poder revestem-se de uma aura de sacralidade e encontram, nos meios religiosos, muita gente que lhes dá apoio e que condena, em nome de Deus, qualquer alteração dos sistemas, pois as ditaduras procuram, com freqüência, ser generosas com as instituições religiosas, desde que estas se mantenham cegas às injustiças e submissas àqueles que as praticam” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Nesse horizonte de compreensão, o evangelho é uma forte denúncia da inautenticidade e da tentativa de manipulação da paz. Daí os conflitos e divisões até nas relações mais imediatas: “o irmão entregará à morte o próprio irmão; o pai entregará o filho; os filhos se levantarão contra seus pais, e os matarão” (Mt 10,21; Mc 13,12-13). Isto aconteceu com o próprio Jesus: ele foi rejeitado (Cf. Mt 13,57-58; Mc 6,4-6), foi expulso (Cf. Lc 4,28-29) e marcado para morrer (Cf. Mt 12,14). E movidos por uma reação violenta, muitos até matarão pensando estar cumprindo um ato religioso: “expulsarão vocês das sinagogas. E vai chegar a hora em que alguém, ao matar vocês, pensará que está oferecendo um sacrifício a Deus” (Jo 16,2). Neste ponto, o martírio chega a sua expressão mais radical.

Em face ao exposto, Jesus nos apontou alguns caminhos para construção da paz:

a) A solidariedade (Cf. Mc 2,1-12). Nesta passagem, Jesus nos dá três lições: primeira, que as s doenças (mal visível) não são castigo por causa dos pecados (mal invisível); segunda, que as causas da paralisia e da dependência do povo não vêm de Deus; terceira, que a fé solidária dos “quatro homens” que “transportavam o paralítico”, aliada à criatividade que os levou a “abrir o teto”, ajuda a superar os males que afligem de morte o povo. Vê-se que o paralítico jazia (estava como morto) no seu leito. Agora ele pode levantar-se e caminhar com suas próprias pernas, torna-se agente da sua própria vida.

E trata-se de uma solidariedade constante, aqui, agora e depois, indicando uma prática de relação curta e de relação longa, como se vê na “parábola do bom samaritano” (Cf. Lc 10,30-37), motivada pela pergunta de um homem “conhecedor de leis”: “Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna? (Lc 10,25). Esse homem até sabia como, a partir da Toráh (Lei). Mas isto não basta, é preciso sair de si, ser misericordioso. Ele só queria saber quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Porém, Jesus quer que ele compreenda: “Qual dos três fez-se próximo do homem?” (Lc 10,36), ao que o próprio “conhecedor de leis” responde: Aquele que fez misericórdia para com ele” (Lc 10,37a). Com isso, Jesus ensinou a boa medida para a conquista da paz e da vida eterna. E trata-se de um imperativo: e faça a mesma coisa” (Lc 10,37b) e viverás (Lc 10,28).

A prática da solidariedade e da misericórdia sempre foram desafios para a humanidade construir a paz, principalmente hoje em dia diante de tanta pobreza e miséria, infelizmente com o alarmante “aumento do fosso entre ricos e pobres” (BENTO XVI. Combater a pobreza, construir a paz. Mensagem para a celebração do dia mundial da paz, n. 07, 1°/01/09. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez 2008), segundo dados mais recentes demonstram: “em 1990, 32% do mundo desenvolvido vivia com menos de um dólar por dia; em 2004, esse número era de 19,2%. A meta para 2015 é de 16%. Diminuir a pobreza à metade até 2015 é o compromisso dos países da ONU, através dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que determina metas na luta contra a miséria, doenças e analfabetismo” (OPINIÃO E NOTÍCIA. Diminui a pobreza no mundo. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 28 dez. 2008).

E sabe-se que, como empecilho à paz, “a pobreza encontra-se frequentemente entre os fatores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. (...) Pois muitas pessoas, mais ainda, populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza” (Bento XVI. Ibidem, n. 01). Dentro desse quadro da pobreza, grande preocupação incide sobre os recém-nascidos, porque “quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças” (Bento XV. Ibidem, n. 5). Daí a forte interpelação: “os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências com uma corajosa autocrítica” (Bento XV. Ibidem, n. 6). Certamente só a conversão da injustiça para a justiça, propiciará a efetivação da paz.

b) O perdão e a reconciliação. Em face da pergunta de Pedro: “Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?”, Jesus respondeu-lhe: “Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,21-22: alusão ao Ano Jubilar: Cf. Lv 25). Porque o perdão não é uma questão de quantidade legal, mas de qualidade, de genuinidade, uma questão de justiça.

No seu grande discurso conhecido como “sermão da montanha” (Cf. Mt 5—7), Jesus ensina aos bem-aventurados que o perdão é fundamental: “se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que seu irmão tem alguma coisa contra você, deixa a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão, depois, volte para apresentar a oferta” (Mt 5,23-24). Porque realmente não tem sentido um culto que desprestigia o perdão. Mas é preciso “perdoar de coração ao irmão” (Mt 18,35). Assim, a reconciliação fraterna é condição para o bom relacionamento com Deus. E isto é um dom que Deus dispensa a cada um de nós, gratuitamente, para exercitá-lo cotidianamente: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma nova realidade apareceu. Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,17-18). Fazendo assim, a comunidade assume a característica fundamental de Jesus que “não veio para chamar justos, mas pecadores” (Mc 2,17).


c) O mandamento do amor. Jesus Cristo, no tocante aos mandamentos, seguindo os doutores da Lei de seu tempo, resumiu todo o emaranhado da Lei e de suas interpretações rabínicas, em dois preceitos, que resumem toda a Lei (Cf. Mc 12,28-34): “Ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com toda a sua força” (Dt 6,5) e “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19,18b). O ser humano de hoje, que quiser verdadeiramente trabalhar na construção da paz, deverá levar a sério e viver estas exigências éticas.

E Jesus vai mais além, fazendo-se o novo e definitivo legislador: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12). É esse amor sinalizador do amor de Jesus que dá identidade à comunidade, à Igreja: “se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). A conseqüência lógica e evidente disso é a paz.


5. Retrato das comunidades cristãs do primeiro século

O Segundo Testamento recolheu e conservou alguns traços marcantes das comunidades do primeiro século, como vemos neste texto paradigmático: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles necessitado algum. Distribuía-se então, a cada um, segundo a sua necessidade” (At 4,32.34a.35b). Esta unanimidade (uma só alma) na partilha era levada a sério: “quanto à coleta em favor dos irmãos, façam como eu ordenei” (1Cor 16,1). Exemplo igual a este, seguiram as comunidades cristãs da Macedônia: “Em meio às muitas tribulações que puseram à prova essas igrejas, a grande alegria e a extrema pobreza delas transbordaram em riquezas de generosidade” (2Cor 8,2).

Esta solidariedade comunitária não se prendia só a uma prática interna, mas se abria para o socorro de outros necessitados, com notamos: “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27). Isto era uma recomendação fundamental, que caracterizava a verdadeira comunidade cristã: “Eles (Tiago, Pedro e João) pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado” (Gl 2,10). Mas além do cuidado desses desamparados, havia também uma séria preocupação com o direito dos trabalhadores em relação ao fruto do seu trabalho e com a sobrevivência dos mais fracos (Cf. Tg 5,1-6).

Portanto, para os primeiros cristãos, a paz não era uma questão meramente intimista, subjetivista, mas uma realidade que sinalizava o tempo novo acontecendo, e que devia se expandir no dia a dia do povo. Por isso, o apóstolo Paulo chamou a mensagem cristã de “evangelho da paz” (Ef 6,15).

Para nós, hoje, na luta pela realização da paz, fica o intrépido apelo papal: “a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo, no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir ao seu socorro. De fato, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma ‘combater a pobreza é construir a paz’” (Bento XV. Ibidem, n. 15).


Conclusão

Nesta abordagem, procurei mostrar que, na Bíblia, a paz é, antes de mais, o dom de Deus que permite a realização plena da pessoa e da sociedade, abrindo os horizontes da felicidade, para além daquilo que as forças humanas conseguem realizar. No entanto, “sem deixar de ser dom de Deus, é também um projeto de construção humana, pois não existe em abstrato, mas reside, ou não, nas pessoas e na sociedade. Dado que não se equaciona simplesmente com a ausência de guerra, a paz exige mais do que pacifismo abstencionista e resignação, como forma de evitar conflitos. Ela requer tanto o conflito e a coragem da denúncia, como o amor e a dedicação na construção da vida, da fraternidade, da justiça, da dignidade e da esperança” (CARVALHO, José Ornelas. Ibidem).

Arrematando este artigo, podemos definitivamente afirmar com o profeta que “o fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça constituirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,17). Por conseguinte, “para os maus não há paz” (Is 48,22). E neste dia que a Igreja também celebra solenemente Maria, Mãe de Deus, fiquemos com sua bênção e proteção, ela que “é presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos” (DA, n. 524), e que “como mãe de tantos, fortalece os vínculos fraternos entre todos” (DA, n. 267) e lança seu “urgente apelo à paz”. Desse modo, só posso finalizar este artigo desejando Shalom a todos.

 
©2007 '' Por Elke di Barros