quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

MEUS 21 ANOS DE SACERDÓCIO MINISTERIAL

Pe. Paulo Nunes de Araujo


“Lembro-me da fé sincera que há em você. (...) Por esse motivo, o convido a reavivar o dom de Deus que está em você pela imposição de minhas mãos” (1Tim 1,5a.6; Cf. 1Tim 4,14-16).

Caros amigos e amigas, a quem cordialmente considero meus irmãos e irmãs em Cristo Jesus, estas palavras do apóstolo Paulo dirigidas a Timóteo bem servem para guiar este artigo a respeito dos meus vinte e um anos de “sacerdócio ministerial” (10/12/1988 - 10/12/2009). E faço-o com desmedida emoção, pois estamos exatamente no coração do “Ano Sacerdotal” proclamado por Bento XVI, sob o tema: “Fidelidade de Cristo, fidelidade do Sacerdote”, com o objetivo de “contribuir para fomentar o empenho de renovação interior de todos os sacerdotes para um seu testemunho evangélico mais vigoroso e incisivo” (Carta para a proclamação de um Ano Sacerdotal, por ocasião do 150º aniversário do “dies natalis” do Santo Cura d’Ars, 16/06/09).

Segundo o Cardeal Dom Claudio Hummes, de quem recebi o Sacramento da Ordem Diaconal, a 19/03/1988, e atual Prefeito da Congregação para o Clero, “os presbíteros, como ministros ordenados e principais colaboradores do respectivo Bispo, estão sacramentalmente ligados a missão apostólica. Este ano especial foi proclamado pelo Santo Padre em favor dos presbíteros, em razão do seu caráter insubstituível e devido à sua importância na Igreja. Como tais, necessitam hoje, de modo especial, de apoio e de renovação espiritual e pastoral” (Homilia pronunciada por ocasião do curso aos bispos de recente nomeação reunidos em Roma, 21/09/09).

Também minha atenção está voltada para o 13° Encontro Nacional de Presbíteros (ENP), que acontecerá de 3-9/02/2010, em Itaici, município de Indaiatuba, São Paulo, com o tema: “ENPs, 25 anos celebrando e fortalecendo a comunhão presbiteral” e o lema: “Eu me consagro por eles” (Jo 17,19a). Minha particular esperança é que este evento, dentro de um âmbito maior, como vimos, seja realmente um instrumento de comunhão e de confirmação da caminhada ministerial, procurando traduzir as aspirações, sentimentos e necessidades de todos nós, os presbíteros.

Quase vinte anos atrás, João Paulo II assinalou o ideal de um verdadeiro presbitério alicerçado nos princípios humanos e evangélicos. Segundo ele, “a fisionomia do presbitério é a de uma verdadeira família, de uma fraternidade, cujos laços não são da carne nem do sangue, mas os da graça sacramental da Ordem: uma graça que assume e eleva as relações humanas, psicológicas, afetivas e espirituais entre os sacerdotes; uma graça que se expande, penetra, se revela e concretiza nas mais variadas formas de ajuda recíproca, não só espirituais mas também materiais. A fraternidade presbiteral não exclui ninguém, mas pode e deve ter as suas preferências: são as preferências evangélicas, reservadas a quem tem maior necessidade de ajuda ou encorajamento. Assim, essa fraternidade ‘tem um cuidado especial pelos jovens presbíteros, tem um cordial e fraterno diálogo com os de meia idade e os de idade avançada e com os que, por razões diversas, experimentam dificuldades; e também aos sacerdotes que abandonaram esta forma de vida ou que não a seguem, não os abandona, pelo contrário, acompanha-os ainda mais com fraterna solicitude" (Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais, n. 74g, 25/03/1992. Os realces gráficos são meus).

Nesta minha caminhada de vinte e um anos de “sacerdócio ministerial”, sempre servindo à Igreja de Jesus e ao seu Evangelho, penso que aquele ideal apontado por João Paulo II ainda continua como urgente desafio a ser perseguido cotidianamente. Entendo que precisamos avançar mais, e bem mais, na amizade, na fraternidade, na solidariedade e na compaixão entre nós. E aí levanto uma questão basal: será que o povo a quem servimos, percebe que realmente nós padres somos amigos uns dos outros? Que nós nos amamos uns aos outros?

Porque o que vale para nós em relação ao povo, vale, em princípio, para nós também em relação a nós mesmos, como ensinou João Paulo II, no que se refere a “formação humana” do sacerdote, ao dizer que “de particular importância, se coloca a capacidade de relacionamento com os outros, elemento verdadeiramente essencial para quem é chamado a ser responsável por uma comunidade e a ser ‘homem de comunhão’. Isto exige que o sacerdote não seja arrogante nem briguento, mas afável, hospitaleiro, sincero nas palavras e no coração, prudente e discreto, generoso e disponível para o serviço, capaz de oferecer pessoalmente e de suscitar em todos relações francas e fraternas, pronto a compreender, perdoar e consolar” (PDV, n. 43c. Os realces gráficos são meus).

Percebemos nessa orientação magisterial de João Paulo II, que o elementar na vida do “ministro ordenado” perpassou por todos os séculos, desde o começo, como vemos nas palavras do apóstolo Paulo, quando ele definiu que o presbítero “deve ser hospitaleiro, bondoso, ponderado, justo, piedoso, disciplinado, e de tal modo fiel à fé verdadeira, conforme o ensinamento transmitido, que seja capaz de aconselhar segundo a sã doutrina e também de refutá-la quando a contradizem” (Tt 1,8-9). E, inflexivelmente, isto deve perpetuar até o fim.

Da minha parte, sei comprovadamente que a caminhada é longa e difícil, e muitas vezes desalentadora. Além das alegrias, há também desafios, tropeços e ciladas, infelizmente muitas delas provenientes de onde nunca se espera. Frequentemente caímos, cansados, desfalecidos. Aí me lembro das palavras do anjo ao profeta Elias, no mais profundo da sua crise existencial: “levante-se e coma, pois o caminho é superior as suas forças” (1Rs 19,7). Realmente, é preciso levantar, recobrar os ânimos e caminhar, vendo nessa situação momento de graça, pois é no caminho que aprendemos a sermos humildes, tolerantes e a provarmos a vida e a dignidade, como no caso dos dez leprosos que “enquanto caminhavam, ficaram curados” (Lc 17,14b). Por isso, precisamos retomar a cada dia a nossa estrada, como dizia São Francisco de Assis: “até agora nada fizemos. Precisamos começar tudo de novo”.

Nesse tempo gracioso, muita coisa boa eu aprendi, que me fizeram amadurecer. Senti na carne aquele conselho do autor sapiencial: “meu filho, se você se apresenta para servir ao Senhor, prepare-se para a provação. Tenha coração reto, seja constante e não se desvie no tempo da adversidade. Seja paciente nas situações dolorosas, porque o ouro é provado no fogo, e as pessoas escolhidas, no fogo da humilhação” (Sir 2,1-2.4-5; Cf. 2Cor 11,23-28).

Tendo vivenciado exatamente isso, hoje eu estou seguro que “as pessoas mais felizes não são aquelas livres de problemas, mas as que sabem lidar com eles” (Leo Buscaglia, professor e escritor italiano). De fato, “é sinal de grandeza e consciência de si quando alguém reconhece seus erros e sua visão limitada de ontem” (MARTINI, Cardeal Carlo Maria. Diálogos noturnos em Jerusalém. Sobre os riscos da fé. Paulus: São Paulo, 2008, p 119). Afinal, nos instruímos também nas falhas, nos reveses da vida, pois certamente “há derrotas que criam o sucesso e vitórias que criam o fracasso. As lições que tiramos dos tropeços são um verdadeiro tesouro para futuros triunfos. Ser um vencedor é assumir a responsabilidade nas derrotas e nas vitórias” (Roberto Shinyashiki, médico-psiquiatra, autor de temas de auto-ajuda).

Enfim, o Evangelho nos mostra que quem tem “a marca dos pregos nas mãos” e “no lado”, é um ressuscitado (Cf. Jo 20,25). Ou seja, “quem tem os estigmas, e não os esconde nem deles se envergonha, testemunha, precisamente, que a ferida impressa pela “morte” (a morte da renúncia à ternura de um afeto humano) não tem poder mortal, já não é morte, mas tornou-se fonte de vida” (CENCINI, Amadeo. Virgindade e celibato hoje. Para uma sexualidade pascal. São Paulo: Paulus, 2008, p. 121-122).

Um outro aspecto importantíssimo para mim, é que nessa caminhada eu nunca estive sozinho. Sempre contei com o auxílio de três forças indispensáveis: em primeiro lugar, o alento de Deus, presença constante na minha vida, com aquela mesma confiança do apóstolo Paulo: “aquele que planta não é nada, e aquele que rega nada é: só Deus é que conta, pois é ele quem faz crescer” (1Cor 3,7); em segundo lugar, o vigor da minha família (mãe e irmãos), que mesmo sem entender direito as minhas circunstâncias, as minhas contradições pessoais, sempre esteve e está do meu lado; por fim, a energia dos meus verdadeiros e leais amigos, os quais são para mim um presente de Deus.

Na “Carta para a proclamação de um Ano Sacerdotal”, Bento XVI bem expressou que “no mundo atual, é preciso que os presbíteros, na sua vida e ação, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico”. Para tal, ele ressaltou o exemplo de São João Maria Vianey, a partir da vivência dos ‘conselhos evangélicos’, a saber: a pobreza, a castidade e a obediência.

Indiscutivelmente, tais características que marcam esse “vigoroso testemunho” são perenes, exatamente porque inspiradas no Evangelho. Assim sendo, sempre procurei viver o valor da “pobreza” não como uma teoria encantadora ou uma ideologia, mas na prática, sem privilégios e honrarias, desprovido de qualquer vantagem financeira e totalmente livre da ganância e do consumismo; sempre busquei viver a audácia da “castidade”, não como negação da minha subjetividade e nem da minha sexualidade, mas como entrega do meu coração ao Senhor de maneira indivisa, para poder servir com liberdade e dedicação ainda maiores aos meus irmãos, vivendo um amor aberto, alegre e honrado, na alteridade e na gratuidade para com todos, homens e mulheres, pobres ou não, jovens e crianças, sem distinção, ou seja, uma castidade “como sinal de amor sem reservas, estímulo de caridade que a todos abraça” (PAULO VI. Carta Encíclica Sacerdotalis Caelibatus, sobre o celibato sacerdotal, n. 24, 24/06/1967); sempre me esforcei para viver a ousadia da “obediência”, não como subserviência, mas como adesão às exigências diárias do meu ministério, colocando-me totalmente à serviço da vida e da missão da Igreja, realizando a vontade de Deus.

Sobre o meu empenho para viver retamente este “vigoroso testemunho evangélico”, quem melhor pode dizer algo consistente a respeito, são as pessoas concretas, ajuizadas e comprometidas, memobros de fato do povo de Deus, em todas as doze paróquias onde residi, convivi e trabalhei ao longo de todos esses anos. Isso é tão verdadeiro que conservo, até hoje, grandes amizades, em todos esses lugares. Porque, como dizia São João Crisóstomo, Patriarca de Constantinopla (349-407), “um homem cheio de zelo, é quanto basta para transformar um povo”. E isso só é possível porque seguramente é o próprio Cristo quem age através dos seus escolhidos.

Mas sei que ainda não estou pronto, completo. Humildemente conto sempre com os indispensáveis auxílios como sugere o Cardeal Dom Cláudio Hummes: “Os nossos presbíteros precisam ser amados e sustentados na vocação e na missão, antes de tudo, pelo próprio Bispo e pela comunidade. Querem ser reconhecidos pelo que são e pelo que fazem; necessitam de ser ajudados e orientados para renovar em seus corações, a verdadeira identidade do sacerdócio e o verdadeiro sentido do celibato” (Homilia pronunciada por ocasião do curso aos bispos de recente nomeação reunidos em Roma, 21/09/09; Cf. Carta Encíclica Sacerdotalis Caelibatus, n. 91). Porém, além do amor e da estima, da parte do Bispo e da comunidade, indispensável é a força da oração, tanto pessoal quanto comunitária. Porque, sem dúvida, "o presbítero para continuar fiel à Cristo e fiel à comunidade, necessita ser um homem de oração, um homem que vive na intimidade com o Senhor. Ele precisa, além do mais, ser confortado pela oração da Igreja e de cada cristão" (Cardeal Dom Cláudio Hummes, em: Notícias da CNBB, 10/12/2009).

Neste meu aniversário de “ordenação sacerdotal” relembro que Santo Ambrósio (340-397 d.C.), um dos quatro maiores doutores da Igreja e quem batizou Santo Agostinho, no seu livro “De Poenitentia”, fala dos seus temores e da sua relutância em ser bispo, de como sentia a própria indignidade. Em meio aos seus questionamentos, foram-lhe inspiradoras as palavras de Jesus dirigidas aos “chefes dos sacerdotes e anciãos do povo”, no Templo, sobre quem realmente fez a vontade do Pai”, donde a sua conclusão foi definitiva: “os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão no lugar de (no grego: proagusin) vocês no Reino do céu” (Mt 21,31c). Porque “os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele” (Mt 21,32b). Assim, eles e elas ajudam a revelar quem de fato nós somos.

Também a mim se apresenta agora a consciência da minha pequenez, de quão temerário e ousado é reassumir, hoje, o ministério presbiteral com a sua grandeza evangélica, mas também com as suas exigências e difículdades. E aqui, mais uma vez a mensagem de Bento XVI me surge como grande apoio: “À Virgem Santíssima entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar no ânimo de cada presbítero um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja que inspiraram o pensamento e a ação do Santo Cura d’Ars. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos que é tão necessário hoje, como o foi sempre. Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre atual a palavra de Cristo aos seus apóstolos, no Cenáculo: ‘No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo’ (Jo 16,33). A fé no divino Mestre dá-nos a força para olhar confiadamente o futuro. Amados sacerdotes, Cristo conta convosco. A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele e sereis também vós, no mundo atual, mensageiros de esperança, de reconciliação, de paz” (Carta para a proclamação de um Ano Sacerdotal).

Para concluir, sirvo-me desta linda oração composta por Santo Ambrósio em vista do seu ministério: “Senhor, visto que me concedeste trabalhar para a tua Igreja, protege os frutos do meu trabalho. Tu chamaste-me ao sacerdócio quando eu era um filho perdido. Não permitas que eu me perca agora, que sou presbítero. Sobretudo, dá-me a graça da compaixão. Concede que eu saiba compadecer-me dos pecadores, do fundo do coração, pois é esta a virtude suprema (...). Concede-me ter compaixão de cada vez que eu for testemunha da queda de um pecador, que eu não o censure com arrogância, mas chore e me aflija com ele. Faz com que, chorando sobre o meu próximo, eu também chore por mim mesmo, aplicando a mim a própria Palavra: a prostituta é mais justa do que eu” (AMBRÓSIO. De Poenitentia, II, 8,67,63: PL 16,431).

Que Deus abençoe a mim e a todos os meus irmãos de sacerdócio ministerial. E que a Santíssima Virgem Maria, Rainha do Clero, interceda por todos nós. Assim seja!

 
©2007 '' Por Elke di Barros