sexta-feira, 30 de maio de 2008

"FELIZES OS PUROS DE CORAÇÃO" (Mt 5,8)

Pe. Paulo Nunes de Araujo
Para nós, cristãos católicos, o mês de junho é dedicado ao “Sagrado Coração de Jesus”. Esta devoção nasceu com S. João Eudes, em 1672, e foi largamente difundida por Sta. Margarida Maria Alacoque, em 1675. No ano de 1856, o papa Pio IX prescreveu-a para a Igreja inteira, fixando-a na terceira sexta-feira, após a festa de Pentecostes.

A partir desta devoção tão popular, perguntamos: como viver hoje, na prática, os mesmos sentimentos e gestos de Jesus, brotados do seu coração? Como realizar o essencial do Evangelho e do cristianismo? S. João Eudes disse: “deves ter com Jesus um só espírito, uma só alma, uma vida, uma vontade, uma intenção, um só coração. E ele será teu espírito, coração, amor, vida, e tudo o que é teu” (Tratado sobre o admirável Coração de Jesus). Como concretizar isso?

Em nível social, político e econômico, nosso planeta está vivendo as conseqüências drásticas da globalização. Se, por um lado este fenômeno é tomado “como ‘uma conquista da família humana’, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças”, por outro, “lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. (...) Esse caráter peculiar faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade,a justiça, o amor, e muito especialmente a dignidade e o direito de todos” (DA, n. 60-61; Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 24).

Face a isso, uma recente e triste estatística mostra que “a metade pobre da população brasileira ganha em soma quase o mesmo valor (12,5% da renda nacional) que os 1% mais ricos (13,3% da renda nacional)” (SICSÚ, João; PAULA, Luis Fernando; e RENAUT, Michel. Por que um novo desenvolvimentismo? Jornal dos Economistas, São Paulo, janeiro de 2005, n. 186). É bom lembrar que a metade da população brasileira atualmente é de cerca de 90 milhões.

E em âmbito eclesial, tanto a teologia como a espiritualidade também vivem grandes crises. Mas são crises que acrisolam, que purificam. Paradoxalmente, quanto mais nos afastamos da origem da teologia e da espiritualidade, mais sentimos a sua necessidade. Sabemos que o cristianismo sempre sobreviveu, desde a sua origem, aos grandes conflitos que geraram os mártires Pedro, Paulo, Estevão, etc., passando pela Idade Média, com Sto. Agostinho, Sto. Tomás de Aquino, S. Boaventura, S. João Crisóstomo, etc.. E como “em toda a sua história, nas últimas décadas, a Igreja foi interpelada e iluminada pelo testemunho de inúmeros profetas e mártires. Profecia e martírio são legados da memória da Igreja chamada a testemunhar, com coragem e liberdade, a Palavra que defende a vida e julga os poderes deste mundo” (Doc. da CNBB, 87, n. 24). Recordamos aqui D. Oscar Romero, Pe. Ezequiel, Pe. Josimo, o índio Marçal Guarani, Chico Mendes, Irmã Doroty Stang e tantos outros, além dos que estão marcados para morrer.

Nessa trajetória, o Concílio Vaticano II (1962-1965) reafirmou e redirecionou o caminho. Surgiu aí a emergência dos oprimidos. A busca da Igreja foi se dando na descoberta dos pobres em geral, onde está o Deus que com eles também clama pedindo socorro (no hebraico: tzaakah: grito desesperado: Cf. Ex 3,7.9). Atualmente, se abre para outras dimensões de pobres e miseráveis, com seus “novos rostos”, a saber: “os migrantes; as vítimas da violência; os refugiados; os seqüestrados; as pessoas portadoras do vírus HIV; os tóxico-dependentes; os idosos; os meninos e meninas vítimas da prostituição, da violência, de tráfico de pessoas, de grande número de abortos, do trabalho infantil; as mulheres maltratadas, exploradas sexualmente; as pessoas com necessidades especiais; os desempregados; os analfabetos digitais; os encarcerados; os moradores de rua; os indígenas e afro-descendentes; os camponeses sem terra” (Doc. da CNBB, 87, n. 83; Cf. DA, n. 402). E esses “novos pobres, hoje não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e descartáveis’” (Doc. da CNBB, 87, n. 25).

A partir da visão dessa realidade primeira (grau zero), nasce a reflexão sobre essa realidade. Depois, vem a atitude pastoral. É desse tripé que nasce o empenho pela libertação dos cativos (Cf. Is 61,1-2). Isso, sim, é fazer teologia, é praticar a espiritualidade! A ação misericordiosa de Jesus (coração aberto aos míseros) se dá nesse processo. Portanto, a teologia e a espiritualidade devem fazer este mesmo caminho metodológico de Jesus. Caso contrário, são falsas.

A marca distintiva da Boa Nova de Jesus está na sua opção incondicional pelos pobres. Em todos os tempos eles foram o grande desafio, como se vê na Escritura: “Nunca deixará de haver pobres na terra” (Dt 15,11a). Isto não é uma maldição, porque esta triste constatação é seguida de um mandamento: “é por isso que eu te ordeno: abre a tua mão em favor do teu irmão, do teu pobre e do teu indigente em tua terra” (Dt 15,11b). Portanto, somos interpelados a “não endurecer o nosso coração ao nosso irmão pobre, mesmo que seja um só” (Dt 15,7).

A teologia e a espiritualidade assumiram o mérito de colocar os pobres em evidência. Como os pobres sempre foram vistos como os que não têm e os ricos como os que têm, surgiram os grandes espaços para assisti-los; verdadeiros samaritanos. Mas atualmente se percebe que os pobres não são somente os que não têm, pois têm sim inteligência, experiência, vontade, entusiasmo, força de trabalho, espiritualidade, sonhos, propostas. Criaram-se então espaços de capacitação dos pobres. Porém, não se considerou o conflito e a causa que levou o indivíduo a tornar-se pobre, a empobrecê-lo.

Na medida que os pobres tomam consciência dos mecanismos que o empobrecem e se mobilizam, tornam-se agentes, projetando alternativas de transformação social. São os pobres libertadores, bem aventurados do Reino. De fato, na história “nunca se conheceu movimento em que dominadores libertam dominados. São os dominados que se libertam” (Enrique Dussel, filósofo, historiador e teólogo argentino). E nessa luta, como cidadãos e filhos de Deus, os pobres foram e são verdadeiros mestres e agentes de conversão de tantos corações endurecidos, tanto na sociedade quanto na Igreja.

A opção incondicional pelos pobres é bíblica e teologicamente fundamentada, porque o Deus de Jesus é o Deus vivo, amor, ternura, humilde, que quer vida, a vida que o pobre clama, como Jesus na cruz. Jesus assumiu até o fim a missão indiscutível de libertar os oprimidos (famintos, doentes, dominados) dos inimigos da vida (Cf. Jo 10,7-16). Por isso, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica”, pois “essa opção nasce da fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão” (DA, n. 392). Assim sendo, a comunidade cristã não pode se envergonhar de Jesus Libertador e Salvador dos sofredores, pois foi para isso que o “Espírito do Senhor” o “ungiu” (Cf. Lc 4,18-22). Portanto, a universalidade do Evangelho, passa pela parcialidade dos pobres. Santo Inácio de Antioquia (67-107 d.C.) escreveu que "onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica" (Carta aos Esmirnenses, 8,2). Mas Jesus Cristo está no meio dos pobres (Cf. Mt 25,31-45). Por que nem sempre nós estamos? Porque a orientação do Magistério eclesial é que a Igreja seja “realmente a ‘casa dos pobres’” (Doc. da CNBB, 87, n. 9; Cf. DA, n. 8).
A opção incondicional pelos pobres ajuda a redefinir a teologia e a espiritualidade. Realmente, “se nesses quinhentos anos de colonização latino-americana os pobres mantiveram uma história de resistência sem conhecer a Bíblia, imaginem quando a conhecerem!” (Gustavo Gutierrez, teólogo peruano). Tal opção ajuda a redefinir também a nossa vida na dimensão do fim último, do escatológico, pois é critério incontestável de “perdição eterna” ou de “vida eterna” (Cf. Mt 25,46). Esta opção nos ajuda ainda a desideologizar a teologia e a espiritualidade, porque a fé não é ignorância ou atraso, mas tem sua razão de ser (Cf. 1Pd 3,15; Rm 10,13-15a; João Paulo II. Fides et Ratio, n. 106-107; Bento XVI. Spe Salvi, n. 18).

Em meio a tamanha pobreza, somos chamados a sair da animosidade para a humanidade, pois é próprio da natureza humana a solidariedade. (Cf. Doc. da CNBB, 87, n. 82). O Segundo Testamentos conservou um retrato ideal das comunidades cristãs do primeiro século, onde “não havia entre eles necessitado algum. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade” (At 4,34a.35b; Cf. At 2,44-45; 5,12-16). Se o mundo é egoísta, é porque se desumanizou.

Diante disso, Bento XVI “nos recorda que a Igreja está convocada a ser advogada da justiça e defensora dos pobres” (DA, n. 395). Naturalmente, a Igreja é vocacionada a ser a comunidade dos bem-aventurados, dos “puros de coração” (Mt 5,3), tornando-se verdadeiro sinal, isto é, “sacramento universal da salvação” (Lumen Gentium, n. 48). Daí a necessidade do compromisso não só com a libertação de todas as pessoas, mas da pessoa toda, inteira, em vista “de uma sociedade justa e solidária, ‘para que todos tenham vida e a tenham em abundância’” (Objetivo geral da ação evangelizadora da Igreja no Brasil – 2008-2010).

Para concluir, arrisco dizer que quem não assume esse processo, não é lícito rezar o Pai nosso. Pois só quem une o Pai ao pão, pode dizer Amém. É preciso, portanto, ajudar e envolver todos os setores da Igreja, pastorais e movimentos, na sua carência do Evangelho e da prática da justiça. Enquanto isso, continuemos pedindo: “Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao vosso!”. Porque “deste divino Coração correm sem parar três rios: o primeiro é de misericórdia pelos pecadores; o segundo é de caridade, para auxílio de todos os sofredores; e o terceiro é de amor e luz para seus amigos, a fim de que se dediquem totalmente à expansão da sua glória” (Das cartas de Sta. Margarida Maria Alacoque).

 
©2007 '' Por Elke di Barros