domingo, 31 de maio de 2009

PENTECOSTES: NASCE E SE EXPANDE A IGREJA

Pe. Paulo Nunes de Araujo


Introdução


O cristianismo originou-se na Palestina. Foi aí que Jesus nasceu, cresceu, desenvolveu a sua missão, passando pela morte, ressurreição e ascensão. Se para o evangelista Lucas Jerusalém foi o ponto de chegada do evangelho (Cf. Lc 2,21-47), torna-se agora o ponto de partida, “até os extremos da terra” (At 1,8), realizando a profecia: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, todos os confins da terra” (Is 45,22a). Neste escrito, a partir de uma leitura do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos, apresento cinco elementos essenciais que deram origem e fizeram expandir a comunidade cristã do primeiro século e continua até os nossos dias.


1. A doação do Espírito Santo (At 2,1-3)

Lucas mostra que a comunidade cristã nasceu “quando chegou o dia de Pentecostes” (At 2,1), isto é, no qüinquagésimo dia, após a Páscoa cristã. No mundo extra-bíblico, num primeiro momento, a festa da Páscoa era a celebração do nascimento dos “primogênitos das ovelhas e do gado” (Ex 34,19b), e na “festa de Pentecostes, a festa das Semanas” (Tb 2,1b; Lv 23,15; Cf. Dt 16,9; 2Cr 8,13), período de “cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado” (Lv 23,16), o povo celebrava “as primícias da colheita do trigo e a festa da Colheita, na passagem do ano” (Ex 34,22; 23,16; Cf. Lv 23,10; Nm 28,26).

Mas posteriormente, com o êxodo do Egito, estas duas grandes festas ganharam uma conotação religiosa. A Páscoa passou a ser uma comemoração obrigatória para “todos os homens” (Ex 34,23; Cf. 23,17), como memorial do dia em que “com mão forte, Javé tirou o seu povo do Egito, da casa da servidão” (Ex 34,14; Cf. Ex 7,4b; Ex 20,2). E Pentecostes, passou a ser celebrado como memorial da Aliança do Sinai, ocorrida “no terceiro mês depois da saída do país do Egito” (Ex 19,1).

Ao recordar o Pentecostes judaico, certamente a intenção de Lucas é mostrar o fenômeno do nascimento e da universalização do novo povo de Deus e da evangelização como obra do Espírito Santo. Por isso, na cena de Pentecostes, Lucas faz uma leitura atualizante de textos da Escritura, ou Primeiro Testamento, terminologia esta sugerida pela CNBB (Cf. Estudo 86, nn. 6.9), pois junto com o Segundo Testamento, ambos nutrem a fé e “manifestam a verdadeira pedagogia divina” (DV, n. 15).

Para uma maior clareza, observemos o seguinte paralelo: a Páscoa judaica é o memorial do dia em que “com mão forte, Javé tirou o seu povo do Egito, da casa da servidão” (Ex 34,14; Cf. Ex 7,4b; Ex 20,2), e a Páscoa cristã é o memorial da “ressurreição” de Jesus (Cf. Mc 16,1-8; Mt 28,1-10; Lc 24,1-12; Jo 20,1-10), que nos libertou da escravidão do pecado; o Pentecostes judaico é o memorial da “Aliança do Sinai”, baseada nos “mandamentos” (Cf. Ex 19—20,17), e o Pentecostes cristão é o memorial da doação do Espírito Santo, um dos fundamentos da Nova Aliança (Cf. At 2,1-4).

Nesta cena da “doação do Espírito Santo”, consideremos três aspectos importantes. Primeiro, “todos eles estavam reunidos no mesmo lugar” (At 2,1), isto é, na “sala superior (no grego: hiperôon anébesan), onde costumavam ficar” (At 1,13a; Cf. Lc 22,12; Mc 14,15) para as reuniões e refeições. Ali, “todos eles, unânimes, perseveravam na oração” (At 1,14), do mesmo modo como na ocasião da Aliança do Sinai, quando “os filhos de Israel... acamparam no deserto, diante do monte” (Ex 19,1-2) enquanto “Moisés subiu” (Ex 19,3).

Segundo, a manifestação do Espírito recorda a teofania do Sinai. A palavra teofania (do grego: Θεοφάνεια theophâneia), significa “manifestação de Deus”. Notemos, então, que para se referir a aparição de Deus no monte, o autor do livro do Êxodo recorre a alguns símbolos teofânicos: “trovões”, “relâmpagos”, “nuvem”, “fogo”, “fumaça”, “tremor do monte” (Cf. Ex 19,16-19). Da mesma forma, Lucas descreve a presença do Espírito Santo usando basicamente os mesmos símbolos teofânicos do Sinai: “de repente, veio do céu um ruído como o sopro de um vendaval impetuoso.... Apareceram então umas línguas como de fogo” (At 2,2-3a).

Em terceiro lugar, o “fogo” tem forma de “línguas”, certamente para salientar o fenômeno da comunicabilidade e da expansão da Igreja. Essa informação recorda a vocação de Isaías, quando um dos serafins do Templo, “com a brasa tocou-lhe os lábios” (Is 6,7a) tornando-o um dos maiores profetas de Deus.

Além destes aspectos relevantes, Lucas ainda mostra que a doação do Espírito Santo é o cumprimento da promessa feita por Jesus: “vós sereis batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias” (At 1,5). No Evangelho, Lucas apresenta o Espírito Santo como a “força do Altíssimo” que fez Maria conceber o Salvador (Cf. Lc 1,35). Trata-se da mesma “força” (Lc 4,14) que “conduziu” (Lc 4,1) Jesus a realizar o Reino de Deus a favor preferencialmente dos mais sofridos (Cf. Lc 4,18-21; Is 61,1-2) e que agora ele repassa aos discípulos: “eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto” (Lc 24,49), para serem as suas “testemunhas” (At 1,8a).


2. O dom das línguas (At 2,4-13)

Lucas relata que todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At 2,4a). A partir daí, “começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (At 2,4b). Com isso, Lucas amostra os apóstolos como germe do novo Povo de Deus, capazes de falar e serem entendidos por todos, “pois cada um (cada grupo humano) os ouvia falar em seu próprio idioma” (At 2,6.8.11). Este fato novo leva os “judeus piedosos” (At 2,5) a ficarem “confusos”, “espantados e surpresos”, “admirados e perplexos” e cheios de indagações (Cf. At 2,7.8.12). Eles realmente não conseguiram assimilar o jeito novo de ser e de viver dos cristãos, ou seja, o jeito novo de ser Igreja. Além disso, “zombavam” dizendo que eles “estavam cheios de vinho doce!” (At 2,13). Notemos que igual zombaria sofreu Jesus (Cf. Mt 12,24; Mc 3,21-22; Lc 11,15; Jo 7,5; 10,20) e o apóstolo Paulo (Cf. At 26,24).

Contra a ironia do povo, Pedro esclarece (Cf. At 2,14-15) e mostra que o ocorrido era a realização da profecia de Joel (Cf. Jl 3,1-5a; Cf. At 2,17-21). Nota-se aí que o Espírito de Deus é infundido em todos, levando-os a serem profetas de um mundo novo.

Aqui também Lucas faz uma releitura da Escritura, traçando um paralelo entre o relato conhecido como “torre de Babel” (Cf. Gn 11,1-9) e a cena do “Pentecostes”, para esclarecer o fenômeno do “dom das línguas”. Segundo a narrativa da “torre de Babel” (do hebraico: Bab: portão + Él: Deus; daí: portão de acesso a Deus), “todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras” (Gn 11,1). Mas quando o povo começou a buscar auto-suficiência e ambição, querendo ocupar o lugar de Deus, “Babel” tornou-se Bilbul (da raiz verbal hebraica balál: confundir), como se vê: “Vamos descer e confundir a língua deles” (Gn 11,7a). Esta situação foi posteriormente denunciada por Isaías (Cf. Is 33,19).

Mas para Lucas, no dia de Pentecostes, além de “todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At 2,4a), todos os outros “ouviam falar, cada um deles no próprio idioma em que nasceram” (At 2,8). Ou seja, em Pentecostes, os povos se reúnem num único povo para ouvir a voz unificante do Espírito de Deus, que fala na cultura de cada um. É evidente que Lucas vê no ato de falar em todas as línguas do mundo a restauração da unidade perdida em Babel/Bilbul.

No Segundo Testamento, os evangelistas apresentam Jesus como o novo “Bab”, “a porta” (Cf. Jo 10,1-10; Mt 7,13-14; Lc 13,24; At 3,20; At 4,1), o acesso pleno, seguro e definitivo a Deus (Cf. Jo 14,6). O evangelista João ainda faz um comentário (no hebraico: mid’rásh) de Gn 28,10-17, para explicar o nosso acesso a Deus através de Jesus (Cf. Jo 1,50-51).

Neste paralelo estabelecido por Lucas, notamos que o centro de compreensão do Pentecostes é o “dom das línguas”. Mas o que isso significa? Conforme uma interpretação antiga, hoje comum entre diversos grupos cristãos, mais especificamente pentecostais ou neopentecostais, como também na Renovação Carismática Católica, este fenômeno é entendido numa perspectiva mágica, como êxtase, dom repentino e inconsciente de falar outros idiomas, balbucios, gemidos, etc. Seria esta uma interpretação correta?

Na Escritura, o fenômeno de falar uma língua estranha, a glossolalia (do grego γλώσσα, glóssa: língua + λαλώ, laló: falar) já era muito conhecido no antigo profetismo israelita. De fato, sob o impulso do espírito, muitos “profetizam”. Mas dentro desse contexto, tudo parece significar que se tratava de um discurso extático (transe, delírio, alienação), inatingível, ideológico, enfim, uma língua estranha, oriunda de uma casta cultural e socialmente dominante.

No primeiro livro de Samuel, por exemplo, encontramos a seguinte orientação: “entrando na cidade, você topará com um grupo de profetas descendo do lugar alto...; eles estarão em transe. Então o Espírito de Javé virá sobre você, e também você entrará em transe com eles e se transformará em outro homem” (1Sm 10,5b-6). Assim, “um grupo de profetas foi ao encontro de Saul. O espírito de Javé desceu sobre ele, que entrou em transe no meio deles. Todos os que conheciam Saul há muito tempo, o viram profetizando entre os profetas” (1Sm 10,10-11a).

Ainda no primeiro livro de Samuel, quando Saul mandou emissários para prender Davi, “eles encontraram a comunidade de profetas em transe (...). Logo o espírito de Deus veio também sobre os emissários de Saul, e eles também entraram em transe. Informado do que estava acontecendo, Saul mandou outros emissários, e também esses entraram em transe. Saul enviou ainda um terceiro grupo de emissários, e também eles entraram em transe. (...) Então o próprio Saul foi até o convento, e também ele foi tomado pelo espírito de Deus, entrou em transe e foi caminhando até chegar ao convento. Saul tirou a roupa e ficou em transe diante de Samuel, e nu ficou deitado no chão; e assim ficou o dia inteiro e toda a noite” (1Sm 19,20-24a).

E no primeiro livro dos Reis, o mensageiro real aventura-se a manipular Miquéias, o profeta de Deus, dizendo: “Veja bem! Todos os profetas estão falando a favor do rei. Procure falar como eles e predizer o sucesso” (1Rs 22,13). É evidente que Miquéias recusou!

Em todo o Segundo Testamento, o fenômeno de falar em línguas estranhas (glossolalia) acontece somente na comunidade de Corinto, na Grécia. Considerando a tese que o fenômeno de “falar em línguas” está ligado a um discurso extático (transe, delírio, alienação), inatingível, ideológico e estranho, proveniente de uma camada cultural e socialmente predominante, conforme verificamos acima, notemos brevemente o contexto social, político, econômico e religioso da cidade de Corinto na época do apóstolo Paulo.

Corinto, a segunda maior cidade grega, com cerca de 500 mil habitantes, era a Capital da província romana da Acaia. Era uma cidade portuária e comercial muito rica. Aí se ajuntava gente de todas as raças e religiões à procura de vida fácil e luxuosa, criando ambiente de imoralidade e ganância. A riqueza escandalosa de poucos contrastava com a miséria de muitos. Dois terços da população eram escravos. Neste amálgama tão heterogêneo de pessoas, no âmbito religioso, todas as religiões da época se implantavam ali, incluindo judeus e prosélitos (fanáticos, partidários, intolerantes, facciosos). Numa colina afastada chamada Acrópoles, havia o templo a Afrodite, deusa da beleza e do amor, de onde cerca de mil sacerdotisas, ao cair da tarde, desciam para se prostituir na cidade. E no campo moral, havia expressões como: “menina coríntia” para designar prostituta; ou, “viver à moda coríntia”, para se referir a uma forma dissoluta de viver.

Foi nesse contexto que o apóstolo Paulo atuou, durante “um ano e meio” (Cf. At 18,1-18), entre os anos 50 e 52, onde fundou uma comunidade cristã com pessoas da camada social mais modesta da população, gente pobre, estivadores do porto e, na maioria, pagãos convertidos (Cf. 1Cor 1,26-28). Por isso a sua firme denúncia aos escândalos que atingiam a comunidade, como incesto, julgamento em tribunais pagãos, imoralidades, etc., chegando a elaborar uma “teologia da corporeidade”, para mostrar que “o corpo é templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19).

Face a essa circunstância, na primeira Carta que Paulo escreve a esta comunidade, ele salienta que “cada um recebe o dom do Espírito para a utilidade de todos (1Cor 12,7). Além disso, ao elencar nesta mesma carta sete carismas, ele coloca por último “o dom de falar em línguas” (1Cor 12,28). E noutra listagem, na mesma Carta, ao elencar dez carismas, Paulo também põe por último “o dom de falar em línguas” (1Cor 12,10.28.30). E mesmo assim, apontando para um outro mais importante que é “o dom de as interpretar (1Cor 12,10.30; Cf. 1Cor 14,27-28).

Neste aspecto, clara e veemente é a orientação do Magistério eclesial: “o destinatário da oração em línguas é o próprio Deus, por ser uma atitude da pessoa absorvida em conversa particular com Deus. E o destinatário do falar em línguas é a comunidade. (...). Como é difícil discernir, na prática, entre inspiração do Espírito Santo e os apelos do animador do grupo reunido, não se incentivem a chamada oração em línguas e nunca se fale em línguas sem que haja intérprete” (Doc. da CNBB, 53, n. 63. Os realces gráficos são meus).

Desta feita, o apóstolo Paulo deixa claro que “o dom de falar em línguas”, prima pela ininteligibilidade ou incompreensão, pois “aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus. Ninguém o entende, pois ele, em espírito, enuncia coisas misteriosas. Aquele que fala em línguas, edifica a si mesmo” (1Cor 14,2.4a). Então, se “falar em línguas” for para auto-edificação, não seria isto injusto com os outros que não têm este dom, e que por isto mesmo não poderão edificar a si mesmos? Até porque o próprio Paulo deixa claro que nem todos têm o dom de falar em línguas (Cf. 1Cor 12,30b). Por isso, ele chega a dizer de si mesmo: “numa assembléia, porém, prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, para instruir também os outros, a dizer dez mil palavras em línguas” (1Cor 14,19). Por conseqüência, o apóstolo ensina que os carismas só são úteis quando constroem a comunidade, na medida que “cada um recebe o dom do Espírito para a utilidade de todos” (1Cor 12,7), porque “aquele que profetiza, fala aos homens: edifica, exorta, consola. Aquele que profetiza edifica a assembléia. Desejo que todos faleis em línguas, mas prefiro que profetizeis” (1Cor 14,3.4b-5).

Neste âmbito, também é evidente o ensinamento do Magistério eclesial: “A graça é antes de tudo e principalmente o dom do Espírito que nos justifica e nos santifica. Mas a graça compreende igualmente os dons que o Espírito nos concede, para nos associar à sua obra, para nos tornar capazes de colaborar com a salvação dos outros e com o crescimento do corpo de Cristo, a Igreja. São as graças sacramentais dons próprios dos diferentes sacramentos. São, além disso, as graças especiais, chamadas também ‘carismas’, segundo a palavra grega empregada por São Paulo e que significa favor, dom gratuito, benefício. Seja qual for seu caráter, às vezes extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas, os carismas se ordenam à graça santificante e têm como meta o bem comum da Igreja. Acham-se a serviço da caridade, que edifica a Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2003; Cf. LG, n. 12).

Por esta razão, o apóstolo lança um forte apelo aos cristãos de Corinto: “Aspirem aos dons mais altos. Aliás, vou indicar para vocês um caminho que ultrapassa a todos: ainda que eu falasse línguas, a dos homens e dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um sino ruidoso ou como um címbalo estridente” (1Cor 12,31b—13,1). Portanto, “a caridade é o primeiro dom e o mais necessário, pelo qual amamos a Deus acima de tudo e o próximo por causa dele” (LG, n. 42). De fato, a caridade é o amor em abundância, “a boa medida, calcada, sacudida, transbordante” (Lc 6,38). Segundo Bento XVI, “a caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é ‘meu’; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é ‘dele’, o que lhe pertence” (Carta Encíclica Caritas in Veritate, sobre o desenvolvimento humano integral, na caridade e na verdade, n. 6).

Na verdade, Paulo não condena o fenômeno de “falar em línguas”. Ele apenas mostra a sua limitação e o ridículo em que a comunidade pode cair, como se vê: “se, por exemplo, a igreja se reunir e todos falarem em línguas, os simples ouvintes e os incrédulos que entrarem não dirão que estais loucos?” (1Cor 14,23). Esta advertência de Paulo é importante porque “Deus não é o Deus da desordem, mas da paz” (1Cor 14,33). Deste modo, Paulo recomenda vivamente a “profecia” (Cf. 1Cor 14,1.5.24-25), pois é o dom pelo qual alguém, sob a inspiração do Espírito Santo, revela com clareza o Projeto de Deus na história, levando a comunidade à conversão, ao esclarecimento da fé e ao compromisso, para transformar a realidade e construir o Reino de Deus, e não apenas ficar comovida, extasiada. Porque não basta se comover (abalar-se, agitar-se, enternecer-se); é preciso mover (agir, fazer caminho, mudar a situação).

Segundo a Bíblia, profeta (do grego: πρoφήτης, prophétes) é aquele que fala em nome de Deus. É, pois, um evangelizador, um comunicador de assuntos espirituais aos participantes de reuniões comunitárias, aos quais se dirigem palavras de exortação e encorajamento. Trata-se de um dom para o bem da comunidade e não tem em vista adivinhações futuras. Assim sendo, pede o Magistério eclesial, que “haja grande discernimento quanto ao dom da profecia, eliminando qualquer dependência mágica e até supersticiosa” (Doc. da CNBB, 53, n. 65).

A este propósito, Bento XVI nos adverte que ‘nós podemos ser tentados a reduzir a vida de fé a uma questão de mero sentimento, enfraquecendo assim o seu poder de inspirar uma visão coerente do mundo e um diálogo rigoroso com tantas outras perspectivas que lutam por conquistar as mentes e os corações dos nossos contemporâneos” (Homilia durante a Celebração Eucarística com bispos, seminaristas, noviços e noviças, na Catedral de Sidney, Austrália, 19/7/2008. O realce gráfico é meu).

Ora, na cena do Pentecostes (Cf. At 2) Lucas corrobora a posição do apóstolo Paulo. Ele ressalta a inteligibilidade, isto é, todos os povos entendem e compreendem. Neste sentido, Lucas quer salientar não tanto o “dom de falar em línguas”, mas o fato que todos “ouviam falar, cada um deles, no próprio idioma em que nasceram” (At 2,8), que todos “ouvem apregoar em suas próprias línguas as maravilhas de Deus” (At 2,11).

Santo Tomás de Aquino, um dos maiores doutores da Igreja de todos os tempos assim nos ensinou: “Quanto ao dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram poucos os consagrados para pregar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de maneira que nas línguas dos diversos povos falassem as de todos. Pelo qual disse o Apóstolo: ‘Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós’ (1Cor 14,18). E em Atos 2,4, se disse: ‘Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja primitiva muitos alcançaram de Deus este dom’” (AQUINO, Santo Tomás de. Comentário de Santo Tomás de Aquino à Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios. Disponível em: <www.veritatis.com.br/article/4974>. Acessado em: 02 de abr de 2009. Os realces gráficos são meus).

Esta posição opõe-se inteiramente à interpretação dos círculos pentecostalistas da atualidade. Entenderemos melhor Atos 2, ao percebermos que o livro todo foi escrito já no final do 1º Século, provavelmente entre os anos 80 e 90 da nossa era, época em que as comunidades já haviam se espalhado e atingido outras realidades, outros ambientes, povos e culturas, graças a ação dos grandes missionários como Paulo, Barnabé, Silas, etc..

Nesse sentido, como já vimos acima, mais do que histórico, o relato de Pentecostes, é “simbólico” (no grego: simbolón, de simbálo: amontoar, reunir, ligar). Assim, a proposta de Lucas foi “reunir” em Jerusalém todos os povos e localidades onde já havia chegado o anúncio do evangelho na língua nativa de cada lugar: Pártia, Média, Elam, Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frigia, Panfília, Egito, Líbia, Roma, Creta, Arábia, além dos judeus e pagãos convertidos (Cf. At 2,9-11a).

De fato, Lucas parece querer convergir a ação de Jesus e da comunidade para a cidade de Jerusalém, tanto no Evangelho (Cf. Lc 2,22; 9,51.53; 13,22.33; 18,31; 24,47) como nos Atos dos Apóstolos (Cf. At 1,8; 2,5; 8,1; 15,2; 21,13). A partir daí, podemos concluir que duas eram as intenções fundamentais do autor: mostrar que o novo povo de Deus goza de unidade na diversidade; e que a evangelização deve estar dentro da realidade cultural de cada povo, em sua época ou ambiente, pois Jesus é o fermento em qualquer sociedade.

Foi assim que a partir do “dom das línguas” os apóstolos, pelo impulso do Espírito Santo, começaram a “anunciar” e a “testemunhar” as “maravilhas de Deus” (At 2,11b), de modo a serem entendidos por todos. A expressão “maravilha” é um termo técnico que a Bíblia usa para indicar as grandes intervenções de Deus na história, dentre as quais se destacam a libertação do povo do Egito (Cf. Ex 15,1-20; 1Sam 2,1-10; Sl 3; Sl 18(17), o nascimento de Jesus (Lc 1,46-55.68-79) e a sua ressurreição, a última “maravilha” de Deus, a sua maior intervenção na história da humanidade, como nos mostra o apóstolo Pedro: “Deus ressuscitou a este Jesus. E nós todos somos testemunhas disto” (At 2,32; Cf. Hb 1,1-4). Desse modo, todas as “maravilhas de Deus” devem ser anunciadas em todas as línguas, a todos os povos, e em todas as épocas.


3. O kérigma (At 2,22-24.32-33.36)

Face ao fenômeno de Pentecostes, o grupo de “judeus devotos” se divide. Então Pedro, “repleto do Espírito Santo” (At 2,4a), “de pé, junto com os onze, levantou a voz e assim lhes falou” (At 2,14), esclarecendo que o ocorrido era a realização da profecia de Joel (Cf. Jl 3,1-5 = At 2,17-21). Em seguida, com intrepidez, transmite o “kérigma” (do verbo grego κηρύσσω: kerisso: proclamar, anunciar, pregar), isto é, a proclamação fundamental de Jesus Cristo, a partir de três aspectos: a) sua prática sinalizadora da presença do Reino de Deus, através dos “milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele” (At 2,22); b) sua morte, como conseqüência da sua ação: “vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios” (At 2,23; Cf. At 10,37-39); c) sua ressurreição, como sinal da aprovação de Deus à sua prática e da condenação da estrutura dominante que o matou: “Deus o ressuscitou, libertando das angústias da morte, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder” (At 2,24; Cf. At 10,40-41). Por isso, “Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,36).

Além do mais, na transmissão do kérigma, Pedro soube muito bem identificar o “Jesus” histórico com o “Senhor e Cristo” da ressurreição, o que é uma questão fundamental na alta Cristologia: “Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,36). Jesus é agora o Senhor da glória, o Cristo da fé. Este é o conteúdo essencial do anúncio profético do Reino iniciado por Jesus, e que levou tantos outros a se somarem na caminhada dos primeiros cristãos.


4. A conversão como decorrência do kérigma (At 2,37-41)

O kérigma de Pedro, enquanto autêntica profecia (anúncio, denúncia e apelo à conversão), levou os seus ouvintes a “sentirem o coração traspassado” (At 2,37a) e a buscarem uma solução: “Irmãos, que devemos fazer?” (no grego: tí poiésomen: At 2,37; Cf. Lc 3,10-14a). Pedro então responde categoricamente: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2,38; Cf. At 10,44-48: aqui também em meio aos “pagãos” o Espírito Santo é doado e eles igualmente são batizados. De fato, o Espírito Santo não é apanágio de alguns). E “com muitas outras palavras (Pedro) dava seu testemunho e exortava-os dizendo: ‘Salvai-vos dessa geração perversa” (At 2,40).

Nessa perspectiva “salvar-se”, ou melhor, “deixar-se salvar”, é essencialmente deixar as estruturas injustas e aderir ao Projeto de Deus. Com isso, Lucas deixa claro, tanto nos Atos dos Apóstolos quanto no Evangelho, que a conversão verdadeira só acontece quando se assume um fazer novo, uma prática nova (“que devemos fazer?”), em função de uma nova humanidade.


5. O nascimento de uma nova comunidade (At 2,42-46)

A partir da doação do Espírito, a conseqüência concreta e imediata do anúncio profético e do compromisso do Batismo, é a gestação e o nascimento de uma nova comunidade, sinal do Reino de Deus. E o compromisso para manter esta nova comunidade era levado a sério, pois “todos eles mostravam-se assíduos” (At 2,42a) em com quatro aspectos essenciais: a) no “ensinamento dos apóstolos” (At 2,42b), isto é, a Escritura era explicada aos recém-convertidos à luz da morte e ressurreição de Jesus; b) na “comunhão fraterna” (At 2,42c), ou seja, numa concreta “comunhão material”, pois eles “punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo a necessidade de cada um” (At 2,44-45), realizando a Escritura que pede: “em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Javé vai abençoar-te” (Dt 15,4). Essa legítima solidariedade fortalecia a comunhão dos corações; c) na “fração do pão” (At 2,42d), o que se refere não só às refeições com Jesus, mas também à “última ceia” (Cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,15-20; 1Cor 11,23-25), onde Jesus anuncia a doação de sua vida, a favor de nossa vida; d) e nas “orações” (At 2,42e), colocando-se diante de Deus como o único absoluto, fazendo lhe pedidos, mas principalmente dando-lhe graças pela libertação recebida (Cf. At 4,23-31).

Com isso, a comunidade ia se construindo pelo “temor” (no grego: fóbos: reverência, respeito, observância) do testemunho dos apóstolos, porque eles demonstravam com a própria vida a ação de Deus. Na verdade, quem se compromete com Jesus, continua a realizar seus gestos, através do dinamismo do Espírito Santo.

Porém, é claro, a comunidade crescia não isenta dos conflitos. Só os Atos dos Apóstolos fala deles por mais de cem vezes. São conflitos das mais variadas ordens. Isso só nos leva a concluir seguramente que onde o evangelho é anunciado e testemunhado com fidelidade, o conflito aparece. Mas é no conflito que as pessoas e as comunidades crescem e amadurecem. É dentro do conflito que se fortalecem a fé, a esperança e o amor. Por isso, é importante ver em profundidade como os primeiros cristãos viveram e enfrentaram tantos conflitos.


Conclusão (At 2,47)

Por fim, Lucas ressalta o vigoroso e irresistível crescimento da Igreja, não só na graça, mas também na quantidade. Trata-se de uma tremenda expansão contagiante e sedutora. Uma vez experimentado o Reino de Deus e com ele se comprometido, já não havia mais como voltar atrás. Portanto, se por um lado a comunidade cristã deve crescer na qualidade pela pregação da Palavra (Cf. At 6,7; 12,24; 3,48-49; 19,20), por outro, quantitativamente também ela deve avançar, pois “o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos” (At 2,47). E se qualidade é o que conta, qualidade mais quantidade é muito melhor, como podemos verificar (Cf. At 1,26; 1,15; 2,41.47; 4,4.32a; 5,14; 6,1.7; 8,12.38b; 9,31.35.42; 11,21.24b; 13,48b; 14,21; 16,5.15a.33a; 17,4.12.34; 18,8.10c; 19,7).

Esse crescimento estrondoso é resultante do verdadeiro seguimento de Jesus. Neste sentido, “seguir Jesus é ‘per-seguir’ seu caminho, ‘pro-seguir’ sua causa e ‘con-seguir’ sua vitória” (BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo, paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 160).

 
©2007 '' Por Elke di Barros